Nos bastidores das negociações
Eram tempos difíceis. Os transportes públicos funcionavam à míngua. Ao terminar a jornada, contei com a providencial boleia de um amigo. Antes de me deixar em casa, passou pelo aeroporto. Acomodou-me na sala do Protocolo. Levantei-me por impulso para ler os telexes da ANGOP. De seguida, registouse a explosão. Uma enorme viga cobria o cadeirão em que estava sentada havia poucos segundos. Coberta pela poeira enegrecida e estilhaços de vidros, corri até esbarrar num dirigente que conhecia da televisão. Descruzou os braços para se sacudir. Noutro ângulo, vi o avião a descolar. Soube posteriormente que levava a equipa governamental à Bicesse. Indirectamente, acabava de estabelecer o primeiro contacto com a terminologia negociações, palavra-chave dos acordos de paz.
Lembro-me das pessoas, supostamente da segurança, que se movimentavam no meio do alvoroço. O meu amigo Lito, de saudosa memória, corria qual campeão olímpico, em direcção ao Protocolo. “Meu Deus, a filha alheia da Dona Guiducha…”, repetia. Não se apercebeu de imediato que era eu a pessoa atordoada ao lado do dirigente. Este, se calhar, também tentava entender o que se passava, enquanto sacudia o fato de corte impecável. Dormi com os ouvidos a zumbir. No dia seguinte, descodifiquei a realidade: eu estava no aeroporto, quando deflagrou a bomba.
Volvido um ano, em Julho de 1991, Víctor Silva, então director-geral do Jornal de Angola, irrompe na Redacção. “Luísa, queres fazer a reportagem da tua vida?” Local: Jamba, no Kuando Kubango. Primeira troca de prisioneiros entre o Governo e a UNITA. A motivação profissional superou o pavor. Recém-chegada do Brasil, onde tinha estado algum tempo em formação, acompanhei as conversações que culminaram com a assinatura dos Acordos de Bicesse, por intermédio da Comunicação Social. Na noite anterior, fizera um recuo estratégico, ao me deparar com militares das FALA, as então forças da Unita, nas imediações do Hotel Turismo.
Aquela foi a primeira de cinco viagens à Jamba, a última em Setembro de 1992. Entretanto, passei a cobrir regularmente a Comissão Conjunta Político-Militar (CCPM) e seus desdobramentos. A Comissão Mista de Verificação e Fiscalização (CMVF) deume a oportunidade ímpar de conhecer áreas de acantonamento em locais recônditos, como o Licua (Kuando Kubango). Já a Comissão para a Constituição das Forças Armadas Angolanas (CCFAA) cruzou os caminhos da repórter com generais da estirpe de Demóstenes Amós Chilingutila e Higino Carneiro. Ainda guardo os discursos dos generais João Baptista de Matos e Abílio Camalata “Numa”, proferidos a 9 de Outubro de 1991, designado, posteriormente, Dia das FAA. Acompanhei os oficiais superiores em formação na escola Nicolau Gomes Spencer, no Huambo. Inicialmente tratada por “menina-sargento”, pelo general João de Matos, fui rapidamente “promovida” ao escalão superior. Reinava um ambiente de descontracção nos bastidores.
Testemunhei avanços e momentos de grande tensão. Vivi os primórdios da crise pós-eleitoral nos corredores da CCPM e Hotel Turismo. Mesmo assim, não acreditava no retorno à guerra. Só percebi a “derrapagem” ao ver o engenheiro Salupeto Pena a sair acelerado da CCPM. Não perguntei nada. O meu rosto devia ser a expressão de infinitas interrogações. “Vamos nos abrigar, depois voltaremos a conversar”, disse, fitando-me nos olhos.
A Rosa Inguane, jornalista moçambicana, o Rafael Marques, o Cinquenta e eu tomámos rumos diferentes. Fomos, provavelmente, os últimos jornalistas a deixar o local. Queríamos obter, em primeira mão, boas notícias. Levámos a certeza do reacender da guerra. O tiroteio tinha lugar no largo Serpa Pinto, zona centro da capital.
A vontade de realinhar o país aos Acordos de Bicesse suplantou os traumatizantes in- cidentes de Luanda, nos quais a UNITA perdeu dirigentes históricos. No último domingo de Dezembro de 1992, integrei o grupo de jornalistas nacionais e estrangeiros que desembarcou no Uíge, ocupado pela UNITA. Seria o primeiro passo para a reposição da administração do Estado na província, acordado pelas partes, no Namibe. Viajámos num helicóptero MI 8 da UNAVEM. A Engrácia Matias, da ANGOP, o Nelson Pedro, da RNA, o António Salvador, o Isidro Sanhanga, a portuguesa Cândida Pinto, a moçambicana Rosa Inguane, o finado Chris Simpson, da BBC, e dois colegas da RTP compunham a equipa. Almoçámos no bispado, a convite de Dom Francisco da Mata Mourisca, que abençoou o encontro.
Estagiário na época, o Sanhanga não comeu absolutamente nada. Esse foi o menor dos contratempos. Distraídos a fazer perguntas, por pouco ficámos no Uíge. O general António Dembo, na altura vice-presidente da UNITA, garantiu-nos que não havia razões para ficarmos retidos. Quando chegámos ao aeroporto, já o helicóptero estava no ar. Mas regressou.
Mais do que uma odisseia na capital zambiana
Em Lusaka, capital da Zâmbia, vivi, de Abril a Dezembro de 1993, os mais “longos” meses da minha vida. Dias penosos. Em duas ocasiões, arrumei as malas para regressar a casa. Queria estar perto da minha mãe. Esforçava-me para noticiar os factos com o distanciamento exigido pelo profissionalismo, mas asfixiava diante da inexistência de progressos. Na época, a guerra de Angola era a mais mortífera do mundo. Morriam diariamente cerca de mil pessoas.
O triângulo entre os hotéis Intercontinental, Pamodzi e Ridgway, a cobrir ocorrências que talvez eternize em formato de livro. Alioune Blondin Beye, diplomata nato, dizia que as negociações eram sempre um processo alimentado de muita paciência. A capital zambiana ensinou-me o sentido profundo de provérbios africanos. Realmente, por mais longa que seja a noite, o amanhecer chega inevitavelmente.
Durante a cobertura do processo de paz, cultivei boas fontes. Ganhei amizades que se tornaram extensão da família. Aprendi que os militares cultivam pragmatismo e códigos de conduta únicos. Absorvi lições indescritíveis de figuras insuspeitas por debaixo do camuflado militar, dos generais João de Matos, Mário Plácido “Ita” e Arlindo Chenda “Ben Ben”, dentre outras figuras que se juntaram às constelações. Lá também estão a Olinda Culanda e o Chico Torres. Juntos assimilámos que jornalistas, ainda que colocados em lados opostos de conflitos, são apenas jornalistas.
Através de relatos de negociadores da paz, senti o eco dos zumbidos de milhões de seres. Não houve grupos de angolanos mais ou menos sofridos. Sofremos todos. As bombas não seleccionam vítimas. O termo “danos colaterais” pertence a pensadores da guerra. Ao cobrir capítulos da história de Angola, cresci profissionalmente e, sobretudo, do ponto de vista humano.
Impossível olvidar o instante em que vi Jonas Savimbi pela primeira vez, assim que desembarcou em Luanda. Sem me aperceber, fui colocada diante do líder do Galo Negro, por Ben-Ben e Salupeto Pena.
“É você a Luísa Rogério que escreve os artigos? Tão Jovem…” Fazia questão de me explicar certas posições defendidas publicamente ou à mesa negocial.
Com o tempo, apurei a capacidade de camuflar a sensação de perigo. Foi assim no dia em que caí num buraco, algures, no Moxico, em 1996. O helicóptero da UNAVEM já me tinha deixado. À semelhança do que aconteceu no Cuemba, Bié, no final da década de 1980. Quim Amaral, o piloto de MI-17, que nas horas vagas cativava plateia com cânticos de esperança, resgatou-me no coração do Bié, mas não viveu para testemunhar o fim da guerra.
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