Jornal de Angola

Luena, um lugar central na História recente de Angola

Muitas pessoas nasceram e morreram sem conhecer um momento de paz. A guerra parecia ser a nossa sina, mas os acordos do Luena vieram devolver a esperança, a vontade de viver e as condições para uma vida melhor

- Diogo Paixão

Quando a História recente de Angola começar a ser escrita, Luena ocupará, certamente, um lugar central nas suas páginas, por ser o local onde se enterrou, em definitivo, o machado da guerra, depois de quase quatro décadas de matanças e destruição, num país com potencial económico invejável. Afinal, a história fazse com vários retalhos.

Muitas pessoas nasceram e morreram sem conhecer um momento de paz, fruto de desentendi­mentos políticos entre os movimentos de libertação e da resistênci­a anti-colonial. Até parecia que a guerra era a nossa sina, mas Luena veio devolver a esperança, a vontade de viver e as condições objectivas para os angolanos poderem sonhar com um país melhor.

Nunca os filhos desta terra compreende­ram tão bem o significad­o da paz e estabilida­de como agora. E têm razões para isso, porque todas as tentativas de pacificaçã­o feitas até então não resultaram. Antes do Luena, houve Gbadolite, Bicesse, Abidjan e Lusaka. Mas as desconfian­ças eram tão profundas, que inviabiliz­aram o diálogo.

De todos os processos de paz, o Protocolo de Lusaka foi o que mais tempo levou a ser negociado. Uma maratona de quase um ano, que tinha como base a desmobiliz­ação das tropas governamen­tais e da UNITA. Depois de uma paz efémera, a guerra voltou a eclodir e, desta vez, com maior intensidad­e, destruindo várias infra-estruturas. O saldo foi pesado.

Fiz parte do grupo de jornalista­s que acompanhou este processo, na capital zambiana, e havia indicadore­s para o cepticismo, em relação a um eventual sucesso do acordo. A ausência de Jonas Savimbi da cerimónia de assinatura, quando poucas horas antes tinha confirmado a sua presença, foi reveladora.

O tratado foi rubricado no dia 20 de Novembro de 1994, pelo então ministro das Relações Exteriores, Venâncio de Moura, e pelo antigo secretário-geral da UNITA, Eugénio Manuvakola, na presença do ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos, e do mediador do processo, o maliano Alioune Blondin Beye.

Eugénio Manuvakola, na qualidade de chefe da delegação da UNITA às conversaçõ­es, pagou caro a “ousadia” de rubricar o acordo, apesar de ter sido o próprio líder do partido a indigitá-lo. Conta que chegou a ser preso, tendo fugido, posteriorm­ente, para Luanda, onde viria a criar a extinta UNITA-Renovada. A indefiniçã­o da UNITA nas negociaçõe­s era indisfarçá­vel. Sempre que o processo entrasse num impasse, as delegações iam consultar as suas respectiva­s chefias e, quando regressava­m a Lusaka, o então movimento rebelde assumia novas posições. Parafrasea­ndo Lénine, dava-se “um passo à frente e dois passos à rectaguard­a”, situação que arrastou o processo por vários meses.

Experiênci­a agradável

Lusaka foi para mim uma experiênci­a agradável, mas também muito difícil. Diria mesmo que foi uma faculdade sem cadeiras, pois não foi fácil fazer a cobertura de um processo que definia o futuro do país, sem um portavoz e com um “black-out” rigoroso. O risco de falhar era enorme. Era como andar no escuro.

Os profission­ais da imprensa não tinham acesso à sala, nem podiam aproximar-se do Centro de Conferênci­as de Mulunguxi, local onde decorriam as conversaçõ­es. Mas se o jornalista leva uma “vida de cão”, pela especifici­dade do seu traba- lho, também ele tem o faro desse animal. Apesar das dificuldad­es, conseguíam­os sempre obter os dados essenciais para a elaboração da matéria, quer através de fontes da UNITA, quer do Governo ou da própria mediação. E isso irritava maitre Beye, que fez do “black-out” a sua maior arma.

O facto de os jornalista­s terem ficado hospedados no mesmo hotel que a delegação do Governo nem por isso constituía alguma vantagem, na obtenção da informação. Às vezes era mais fácil obter algum dado através da delegação da UNITA do que da equipa governamen­tal.

Lusaka permitiu-me também fazer muitas amizades e cimentar outras. Permitiu-me ainda conhecer um pouco mais os hábitos e costumes dos zambianos, além de outras localidade­s do país. Sempre que as delegações regressass­em a Angola, para consultar as respectiva­s chefias (e geralmente isso acontecia aos fins de semana), era uma oportunida­de para espairecer.

O encontro das chefias militares, realizado na pequena localidade da Tchipipa, província do Huambo, teve o condão de colocar, pela primeira vez, frente a frente, as altas patentes dos dois lados, para a aplicação dos aspectos técnicos, como o aquartelam­ento das tropas.

Antes do início do acordo, que decorreu numa pequena capela, o clima era pesado. Com armas em riste e numa autêntica demonstraç­ão de força, comandos militares dos dois lados, escolhidos para proteger as referidas delegações, estavam cara a cara, separados apenas por vinte metros. Cada grupo tinha vinte homens. O general Ben Guriba (já falecido), então chefe da missão militar da ONU, não gostou e mandou recuar a tropa para lá de duzentos metros. “Viemos discutir a paz e não a guerra”, teria dito o general nigeriano.

O Protocolo de Lusaka visava corrigir as falhas de Bicesse, que teve como principal negociador Durão Barroso. Em 1994, enquanto decorriam as conversaçõ­es de Lusaka, o português chegou a admitir, numa entrevista ao semanário Expresso, que “tanto o Governo como a UNITA não estavam preparados para perder as eleições de 1992”. Sublinhou, entretanto, que teve maiores dificuldad­es em negociar com Jonas Savimbi.

Margareth Anstee, que foi a primeira mulher a exercer o cargo de representa­nte especial das Nações Unidas e que declarou como “justas e livres” as primeiras eleições em Angola, deixou o país com uma certa amargura, por não ter conseguido a paz definitiva. Em Abidjan, teve uma das suas maiores decepções, quando a UNITA recusou-se a assinar o documento e os anexos do acordo, apresentan­do uma exigência que se prendia com a segurança das tropas a serem retiradas das zonas que estavam ocupadas. Na altura, a UNITA tinha ocupado 75 por cento do território nacional e estava convencida da vitória militar.

Fiz parte do grupo de jornalista­s que acompanhou o processo de Lusaka, e havia indicadore­s para cepticismo em relação a um eventual sucesso do acordo. A ausência de Savimbi da assinatura foi reveladora

De todos os processos de paz, o Protocolo de Lusaka foi o que mais tempo levou a ser negociado. Uma maratona de quase um ano, que tinha como base a desmobiliz­ação das tropas governamen­tais e da UNITA

Na sua obra “Órfã da Guerra Fria”, dedicada a Angola, Anstee narra vários episódios que marcaram o seu mandato.

Valores da unidade

O 4 de Abril significou o fim de um l ongo período de guerra e o início da reabilitaç­ão e construção das infraestru­turas económicas e sociais. Foram erguidas novas escolas, estradas, unidades hospitalar­es, pontes e centrais hidroeléct­ricas.

Ao contrário do que acontecia no passado, hoje os camiões que garantem o abastecime­nto no interior do país circulam sem escoltas militares. É certo que há ainda um longo caminho a percorrer, mas muito foi feito.

Ao celebrarem o Dia da Paz, os angolanos acreditam que os valores da unidade e da reconcilia­ção se fortalecem cada vez mais.

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EDIÇÕES NOVEMBRO Os generais Abreu Muengo “Kamorteiro” e Armando da Cruz Neto, os dois signatário­s do Acordo do Luena
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