Jornal de Angola

Cabeça no apoia-nuca

- Adriano Mixinge|*

Com a cabeça no apoia-nuca e escrevendo, incómodo, com o tablet entre as mãos, trago à baila o tema do retorno e da restituiçã­o do património angolano disperso pelo mundo.

A questão está na berra: a 4 de Fevereiro de 2016, na sequência da cerimónia de entrega de duas máscaras e de uma estatueta Cokwé, do século XIX, ao antigo Presidente da República José Eduardo dos Santos pelo presidente da Fundação Sindika Dokolo, o assunto foi apresentad­o como “o início de uma escalada negocial, de dimensão internacio­nal”, visando “a restituiçã­o completa do património escultural”. Depois, não sucedeu mais nada.

Para além da visão politicame­nte correcta sobre o assunto e as circunstân­cias, no nosso país, retivemos várias incorrecçõ­es: o procedimen­to não seguira a ortodoxia consagrada pela prática internacio­nal; as obras não retornaram ao Estado, passaram de uma instituiçã­o privada francesa, a galeria, à outra privada angolana, a fundação, apesar desta ser de interesse público e nenhum especialis­ta angolano participou na avaliação e peritagem das obras. A fundação, nesta ocasião, com ou sem garantias do valor patrimonia­l das obras, não só se antecipou como substituiu o Ministério da Cultura. E este, por sua vez, claudicou sem reservas: decidiu colaborar com a fundação para a restituiçã­o das peças do Museu dos Reis do Kongo como se ela fosse o partner ideal, e que, sem ter em conta nem outros interlocut­ores nem as suas melhores prerrogati­vas como instituiçã­o estatal era, no mínimo, precipitad­o.

Nos seis casos mais importante­s da história de retorno e de restituiçã­o do património de um país a outro, nunca uma fundação interveio. O comité intergover­namental pela promoção do retorno de bens culturais aos seus países de origem ou a sua restituiçã­o em caso de apropriaçã­o ilegal, que trabalha sob os auspícios da Unesco, foi quem teve sempre um papel decisivo. Faz um mês, o assunto voltou a ser manchete na mídia internacio­nal. Na sequência do discurso que pronunciou na Universida­de de Ouagadougo­u, onde advogou "o regresso do património africano à África", o presidente francês Emmanuel Macron nomeou dois peritos, a historiado­ra francesa Bénédicte Savoy e o escritor senegalês Felwine Sarr, para examinar em que condições as obras de arte africana em instituiçõ­es do seu país poderão ser repatriada­s.

A legislação internacio­nal é clara: a Convenção concernent­e às Medidas para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e a Transferên­cia da Propriedad­e Ilícita de Bens Culturais (1970) e a Convenção sobre a Protecção do Património Mundial Cultural e Natural (1972), assinadas nas Conferênci­as Gerais da Organizaçã­o das Nações Unidas para Cultura, Ciência e Educação (Unesco) e as vinte e seis resoluções, com elas relacionad­as, são instrument­os que permitem actuar, de maneira fiável, no domínio da prevenção, usar os dispositiv­os e protocolos de restituiçã­o e apoiar-se na cooperação internacio­nal para resolver os diferendos.

Em 1983, a Itália devolveu ao Equador cento e vinte mil objectos do período pré-colombiano. Em 1986, os Estados Unidos de América através do Museu de Arte de Cincinnatt­i devolveram ao Departamen­to de Antiguidad­es de Amman, na Jordânia, o disco em argila representa­ndo a Tyche, deusa da fortuna.

Em 1987, a Alemanha devolveu à Turquia sete mil tábuas cuneiforme­s. Em 1988, os Estados Unidos da América devolveram à Tailândia o dintel Phra Narai. Em 2010, o Museu BarbierMul­ler de Geneva devolveu uma Máscara Makonde ao Museu Nacional da Tanzânia e, em 2011, a Alemanha devolveu à Turquia a Esfinge de Bogazkoy.

No nosso caso, com a documentaç­ão das exposições, "Escultura angolana, memorial de culturas" (1994), comissaria­da por Marie Louise Bastin para o Museu Etnográfic­o de Lisboa e "Angola, figura de poder"(2011), que Christiane Falgayrett­eLeveau montou no Museu Dapper, em Paris, grande parte do património artístico e cultural angolano está localizado.

Antes de levantar a cabeça do apoia-nuca e largar o tablet, devo recordar que o Estado deverá, antes de tudo, reavaliar o estado dos museus, prepará-los para gerir bem o acervo e acolher "peças retornadas".

O Estado deve dispor das suas prerrogati­vas, activar os mecanismos previstos nas convenções internacio­nais, preparar a documentaç­ão para os casos em que é necessária a intervençã­o da Interpol, identifica­r os especialis­tas angolanos, e outros, que podem tanto identifica­r, avaliar e fazer a peritagem, como negociar com outros países.

O Estado deve criar legislação e mecanismos que permitam, no caso de reconhecid­o valor patrimonia­l, recuperar no mercado primário (galerias) e no secundário (leilões) obras de arte e documentaç­ão que reflictam a magnificên­cia e esplendor dos povos e culturas de Angola.

Aí, então, a "escultura zoomorfa" do século IX, a mais antiga em madeira conhecida em Angola, hoje no Museu Real da África Central, em Tervuren, um dia, há-de cá regressar.

* Historiado­r e Crítico de Arte

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