Cabeça no apoia-nuca
Com a cabeça no apoia-nuca e escrevendo, incómodo, com o tablet entre as mãos, trago à baila o tema do retorno e da restituição do património angolano disperso pelo mundo.
A questão está na berra: a 4 de Fevereiro de 2016, na sequência da cerimónia de entrega de duas máscaras e de uma estatueta Cokwé, do século XIX, ao antigo Presidente da República José Eduardo dos Santos pelo presidente da Fundação Sindika Dokolo, o assunto foi apresentado como “o início de uma escalada negocial, de dimensão internacional”, visando “a restituição completa do património escultural”. Depois, não sucedeu mais nada.
Para além da visão politicamente correcta sobre o assunto e as circunstâncias, no nosso país, retivemos várias incorrecções: o procedimento não seguira a ortodoxia consagrada pela prática internacional; as obras não retornaram ao Estado, passaram de uma instituição privada francesa, a galeria, à outra privada angolana, a fundação, apesar desta ser de interesse público e nenhum especialista angolano participou na avaliação e peritagem das obras. A fundação, nesta ocasião, com ou sem garantias do valor patrimonial das obras, não só se antecipou como substituiu o Ministério da Cultura. E este, por sua vez, claudicou sem reservas: decidiu colaborar com a fundação para a restituição das peças do Museu dos Reis do Kongo como se ela fosse o partner ideal, e que, sem ter em conta nem outros interlocutores nem as suas melhores prerrogativas como instituição estatal era, no mínimo, precipitado.
Nos seis casos mais importantes da história de retorno e de restituição do património de um país a outro, nunca uma fundação interveio. O comité intergovernamental pela promoção do retorno de bens culturais aos seus países de origem ou a sua restituição em caso de apropriação ilegal, que trabalha sob os auspícios da Unesco, foi quem teve sempre um papel decisivo. Faz um mês, o assunto voltou a ser manchete na mídia internacional. Na sequência do discurso que pronunciou na Universidade de Ouagadougou, onde advogou "o regresso do património africano à África", o presidente francês Emmanuel Macron nomeou dois peritos, a historiadora francesa Bénédicte Savoy e o escritor senegalês Felwine Sarr, para examinar em que condições as obras de arte africana em instituições do seu país poderão ser repatriadas.
A legislação internacional é clara: a Convenção concernente às Medidas para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e a Transferência da Propriedade Ilícita de Bens Culturais (1970) e a Convenção sobre a Protecção do Património Mundial Cultural e Natural (1972), assinadas nas Conferências Gerais da Organização das Nações Unidas para Cultura, Ciência e Educação (Unesco) e as vinte e seis resoluções, com elas relacionadas, são instrumentos que permitem actuar, de maneira fiável, no domínio da prevenção, usar os dispositivos e protocolos de restituição e apoiar-se na cooperação internacional para resolver os diferendos.
Em 1983, a Itália devolveu ao Equador cento e vinte mil objectos do período pré-colombiano. Em 1986, os Estados Unidos de América através do Museu de Arte de Cincinnatti devolveram ao Departamento de Antiguidades de Amman, na Jordânia, o disco em argila representando a Tyche, deusa da fortuna.
Em 1987, a Alemanha devolveu à Turquia sete mil tábuas cuneiformes. Em 1988, os Estados Unidos da América devolveram à Tailândia o dintel Phra Narai. Em 2010, o Museu BarbierMuller de Geneva devolveu uma Máscara Makonde ao Museu Nacional da Tanzânia e, em 2011, a Alemanha devolveu à Turquia a Esfinge de Bogazkoy.
No nosso caso, com a documentação das exposições, "Escultura angolana, memorial de culturas" (1994), comissariada por Marie Louise Bastin para o Museu Etnográfico de Lisboa e "Angola, figura de poder"(2011), que Christiane FalgayretteLeveau montou no Museu Dapper, em Paris, grande parte do património artístico e cultural angolano está localizado.
Antes de levantar a cabeça do apoia-nuca e largar o tablet, devo recordar que o Estado deverá, antes de tudo, reavaliar o estado dos museus, prepará-los para gerir bem o acervo e acolher "peças retornadas".
O Estado deve dispor das suas prerrogativas, activar os mecanismos previstos nas convenções internacionais, preparar a documentação para os casos em que é necessária a intervenção da Interpol, identificar os especialistas angolanos, e outros, que podem tanto identificar, avaliar e fazer a peritagem, como negociar com outros países.
O Estado deve criar legislação e mecanismos que permitam, no caso de reconhecido valor patrimonial, recuperar no mercado primário (galerias) e no secundário (leilões) obras de arte e documentação que reflictam a magnificência e esplendor dos povos e culturas de Angola.
Aí, então, a "escultura zoomorfa" do século IX, a mais antiga em madeira conhecida em Angola, hoje no Museu Real da África Central, em Tervuren, um dia, há-de cá regressar.
* Historiador e Crítico de Arte