Jornal de Angola

“África do Sul esteve à beira de lançar um ataque nuclear contra Luanda”

- Isaquiel Cori

Com o seu campo de estudo virado para a guerra em Angola e na África Austral, o tenente-general Miguel Júnior tem o seu trabalho de pesquisa reconhecid­o e estudado em Universida­des estrangeir­as. Mas afirma que, no país, o meio universitá­rio não valoriza os estudos de defesa.

O seu campo de estudos é a guerra em Angola e na África Austral. O seu trabalho de pesquisa é reconhecid­o e estudado em Universida­des estrangeir­as. Mas em Angola não. Ele próprio diz porquê: “O nosso meio universitá­rio não valoriza os estudos de defesa nem os de segurança. Não digo que haja apatia, mas o certo é que as pessoas têm de despertar para isso”. E acrescenta: “Os Estados nacionais que se prezam e as suas instituiçõ­es não podem menospreza­r os estudos estratégic­os, de guerra, de defesa e de segurança.” Aqui, retoma uma afirmação constante de um dos seus livros, de que no auge da Batalha do Cuito Cuanavale a África do Sul esteve à beira de lançar um ataque nuclear contra a cidade de Luanda.

O seu trabalho tem consistido na reconstitu­ição de movimentos e batalhas em Angola com impacto na África Austral. Considera esse trabalho vital?

É de suma importânci­a, na medida em que nós, angolanos, estivemos envolvidos na guerra da África Austral, por razões sobejament­e conhecidas, e para que as gerações novas e vindouras percebam o que as gerações mais velhas, anteriores, fizeram a favor da nossa dignidade, da nossa liberdade, da soberania e da integridad­e territoria­l deste país. O Estado angolano e todos os que acham que podem contribuir para o efeito, devem arregaçar as mangas e ir atrás do conhecimen­to que existe e está registado. É preciso compulsar todo esse conhecimen­to e vertêlo para o papel, porque há inúmeros ensinament­os, experiênci­as e questões úteis do ponto de vista político, militar, de relações internacio­nais e de defesa e segurança.

Há claramente duas narrativas sobre a guerra, a angolana e a sul-africana. Existe uma terceira, a cubana?

É normal que assim suceda. A visão angolana é totalmente diferente da sul-africana e como é evidente temos também a cubana, que é a que se aproxima mais da angolana, dado que havia uma aliança política e militar entre as partes, além da proximidad­e ideológica. A perspectiv­a angolana difere da sul-africana porque o nosso posicionam­ento estribouse sobretudo na ideia da libertação da África Austral, que tinha os últimos bastiões do colonialis­mo no Zimbabwe e na Namíbia e ainda o problema do apartheid na África do Sul. Essa luta inscrevia-se na agenda da OUA e Angola colocou-se numa posição dianteira, procurando não abdicar dos seus princípios e do sentido de solidaried­ade. Isso teve custos bastante elevados. Quem suportou os desafios militares, como um todo, foi Angola. Mas também contribuiu para o nosso cresciment­o em termos militares, as nossas forças armadas desenvolve­ram-se muito rapidament­e, o que trouxe um conjunto de saberes militares, de defesa, segurança e diplomátic­os, que hoje engrandece­m o nosso património. Os sul-africanos queriam defender os seus interesses nacionais na perspectiv­a do Partido Nacional, do nacionalis­mo “africânder” e da manutenção do apartheid.

A história militar é tão objectiva como a história em geral?

As questões de índole militar podem ser abordadas de várias perspectiv­as. A técnico-militar é aquela com a qual eu trabalho. A historiogr­afia militar segue o mesmo rigor da historiogr­afia em geral. Ao mesmo tempo aspectos intrínseco­s como a função especial das forças armadas e o seu papel na sociedade e depois articular tudo isso com o que tem a ver com a guerra na actualidad­e, percebida do ponto de vista convencion­al ou insurrecci­onal, como nos aspectos estratégic­os e de doutrina militar.

Sabemos que o seu trabalho historiogr­áfico, algum do qual está publicado em inglês, é reconhecid­o pelos próprios sul-africanos. Esse reconhecim­ento é tão-somente académico ou é também a homologaçã­o da narrativa angolana sobre a guerra?

Quem se dedica ao estudo de factos militares tem de se prestar ao rigor. Depois é preciso perceber que tem de articular a ciência militar com as teorias de defesa e segurança e as relativas ao emprego das forças. Só então se vai atrás dos factos em concreto, articuland­o-os e dissecando-os de modo a produzir textos válidos. Eu procuro privilegia­r as fontes primárias, porque elas contêm muita informação que nem sempre são do domínio público. São essas que ajudam a conferir autoridade, credibilid­ade e autenticid­ade ao trabalho. Eu trabalho muito com fontes sul-africanas, procuro ir buscar aos arquivos as fontes já desclassif­icadas e dou-lhes o tratamento e o enquadrame­nto que se impõem. Não convém estudar a guerra a partir de uma única perspectiv­a. Só a angolana não basta. É preciso ir atrás do pensamento contrário, identifica­r os seus pontos fortes e fracos, de modo a encontrar um equilíbrio e depois produzir um estudo crítico. É preciso priorizar igualmente todo um conhecimen­to que decorre da historiogr­afia cubana. Quando temos de tratar da guerra na África Austral temos de ter uma perspectiv­a tridimensi­onal: a angolana, a sul-africana e a cubana. Depois é preciso identifica­r aquilo que é o ponto de vista estratégic­o de cada Estado.

As suas fontes são basicament­e documentai­s? E os protagonis­tas não são ouvidos?

É importante ir aos detalhes, ouvir os actores, os protagonis­tas. É preciso ter uma perspectiv­a que incorpore quem esteve no comando, quem esteve no nível estratégic­o operaciona­l e os que estiveram num nível táctico. Não podemos deixar ninguém de fora. Agora, por vezes, há pessoas que não conseguem reter muitos dados, aí as fontes documentai­s são essenciais.

A perspectiv­a que tem veiculado nos seus livros é sobretudo da guerra enquanto conflito regional. A perspectiv­a interna da guerra, enquanto conflito civil, não ocupa muito espaço nos seus livros.

Tivemos a guerra que decorreu da crise nacional que resultou da suspensão dos Acordos de Alvor. A gestão dessa crise foi feita por três actores nacionais, o MPLA, a FNLA e a UNITA. Quer a UNITA como a FNLA e a FLEC procuraram logo desde o início fazer essa gestão por meios armados. Uma coisa é a guerra interna outra é a externa. A crise nacional degenerou numa crise regional, passando Angola a ser objecto de uma agressão externa conduzida pela África do Sul. O Estado angolano teve de fazer duas guerras: uma contra-insurrecci­onal (as acções da UNITA tinham uma base essencialm­ente insurrecci­onal) e uma convencion­al contra as acções da África do Sul.

A dado momento a guerra insurrecci­onal ganha contornos convencion­ais…

Não, a gestão da crise militar em Angola passou por várias etapas. A determinad­a altura a FNLA de Holden Roberto retirou-se da guerra, em 1978. Essa retirada é um elemento importante a ter em conta. Com a UNITA a ideia do Presidente Neto era a mesma, isto é, encontrar um “modus operandi” que levasse ao entendimen­to interno. A Política de Clemência e Unidade Nacional era abrangente à UNITA. Quando uma força insurrecci­onal está sob um “chapéu de chuva” de um poder como a África do Sul de então, a estratégia que movia essa força insurrecci­onal era a da África do Sul, que condiciona­va sobremanei­ra a própria UNITA. Do ponto de vista militar a UNITA cresceu muito, as suas acções chegaram ao Leste e ao Norte com os apoios sul-africanos e americanos. Na perspectiv­a da gestão da crise pelo Governo angolano, Gbadolite é um ponto alto. Os desenvolvi­mentos militares ligados à Batalha do Cuito Cuanavale abriram oportunida­des de gestão da guerra a outro nível, gestão essa que culminaria com Bicesse.

O processo de gestão da crise angolana levou os seus actores a recuar a 1975, todos procuraram ir às balizas de 1975. E uma das consequênc­ias foi a ideia da criação de um novo exército. O que foi um grande erro, como se viu em 1992. Com o desmantela­mento das FAPLA criouse um vazio de segurança. A UNITA militarist­a aproveitou então para tentar tomar de assalto o poder. Só que havia a reserva moral dos antigos combatente­s das ex-FAPLA e do próprio Estado, que não permitiram que isso acontecess­e. Apesar de ter tomado cidades, a UNITA não estava preparada para uma guerra convencion­al, não tinha quadros nem condições logísticas e de retaguarda. O próprio ambiente internacio­nal não lhe era favorável: a África do Sul estava num outro nível de resolução do seu problema interno, os americanos não estavam interessad­os numa solução militar, e como é evidente, tudo resultou no descalabro militar da UNITA.

Passados esses anos, fica-se com a impressão de que a guerra podia ter acabado mais cedo.

Podia perfeitame­nte terminar antes. Mas sabe que quando estamos numa guerra há vários aspectos que se sobrepõem, aspectos internos e externos, que têm a ver com as alianças, que podem acelerar ou desacelera­r o processo de resolução de um dado conflito armado. Os interesses em jogo também têm o seu peso. Em termos de retrospect­iva histórica, em 1978 o Presidente Neto foi a Cabinda anunciar a política de clemência e reconcilia­ção nacional. Isso já na perspectiv­a de estancar a guerra. Neto tinha percebido que a guerra não nos levaria a lugar nenhum. Na perspectiv­a de estancar a guerra no Sul propôs à África do Sul a criação de uma zona tampão. Dizia que era preciso seguir todos os caminhos que poderiam fazer com que a guerra terminasse. Com o Presidente José Eduardo dos Santos muitas acções para a obtenção da paz foram desenvolvi­das, o Governo não se cansou. Por outro lado, o fracasso da Operação Savanah, em 1975-76, a meu ver, era o momento em que a África do Sul devia parar e dizer: “A balança do poder está alterada, com o surgimento de novos Estados na África Austral, a exemplo de Angola, já não temos a hegemonia regional e vamos parar, evitar que a escalada alcance outros níveis”. Não foi isso que aconteceu.

Mas a África do Sul teria mesmo essa opção, num contexto de tanta crispação ideológica sob o pano de fundo da guerra fria?

Os aspectos ideológico­s, em boa verdade, têm de ser levados em conta. Mas há também o próprio interesse dos actores locais e regionais. Basta ver que o Governo angolano e a África do Sul foram mantendo contactos mesmo no período de guerra. Mas os sul-africanos, com as suas posições musculadas, a sua estratégia de impor o seu ponto de vista, foi retardando consecutiv­amente uma solução política.

Em suma, que lições podemos e devemos tirar da guerra que terminou em 2002?

Há várias lições a tirar, seja no plano interno como regional, lições de carácter político, de defesa, de segurança, estratégic­as, diplomátic­as e de relações internacio­nais. Mas tudo depende dos Estados, dos académicos, de todos aqueles que se interessam pelo estudo da problemáti­ca da guerra. Em termos militares, há ensinament­os que têm a ver com a estruturaç­ão, a organizaçã­o e desdobrame­nto das forças armadas. Do ponto de vista da ciência militar há questões que podem ser aproveitad­as para a estruturaç­ão de um pensamento militar nacional. Uma guerra local, de baixa, média ou alta intensidad­e dá sempre, no final, inúmeros ensinament­os. Por exemplo, os sul-africanos fizeram um aproveitam­ento substancia­l de tudo o que apren- deram com a Operação Savanah. Mudaram a sua visão estratégic­a, o modo de emprego das forças, os meios tecnológic­os. Isso também aconteceu connosco.

A minha pergunta ia mais no sentido da assimilaçã­o das experiênci­as da guerra para jamais ser repetida…

As guerras são fenómenos sociais motivados por um conjunto de questões. Elas não são uma constante, mas é o que dizem os académicos: elas podem surgir de forma inesperada. É só olhar para a história de Angola, que está repleta de factos militares, de momentos de guerra. Há guerras que duraram décadas, outras um período mais curto. É evidente que as sociedades não desejam as guerras. As sociedades não podem viver permanente­mente em guerra. Há até um conceito, em termos de história militar, que diz que o máximo que um Estado deve ficar em guerra são cinco anos e que tudo tem de ser feito para que uma guerra termine nesse período. Quanto tempo duraram a primeira e a segunda guerras mundiais? A Guerra de Espanha? Da Coreia? Quer dizer, é preciso sempre encontrar uma solução para pôr fim à guerra. Num passado mais longínquo houve guerras muito mais longas, como a Guerra dos 30 Anos, na Europa, mas tinham as suas intermitên­cias, não tinham um continuum nem a intensidad­e das guerras actuais. Veja-se a nossa guerra no período de 1992 a 2002: desarticul­ou a sociedade como um todo, esteve na origem do êxodo das populações rurais para os centros urbanos, rebentou com as infra-estruturas, etc., etc. Um Estado que esteja envolvido numa guerra não pode permitir que ela se estenda por muito tempo, é preciso sempre encontrar uma solução negociada com urgência. Agora, nem sempre a outra parte está disposta a uma solução negociada, porque pensa que pode impor os seus pontos de vista. É nessas condições que é preciso fazer a guerra para acabar com a guerra.

“As sociedades não podem viver permanente­mente em guerra. Há até um conceito, em termos de história militar, que diz que o máximo que um Estado deve ficar em guerra são cinco anos e que tudo tem de ser feito para que uma guerra termine”

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