Jornal de Angola

“O acto de escrever é cansativo, exige tempo”

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Tendo em conta o enorme impacto que a guerra teve na nossa sociedade, não é surpreende­nte que não haja um “boom” em termos de literatura de memórias, de testemunho­s e até mesmo de ficção baseados na guerra? É cedo demais?

Muitos camaradas têm nas suas memórias de guerra bem presentes, os seus apontament­os. Falta é tempo para as pessoas escreverem.

Falta de tempo ou de hábitos de escrita?

Bem, tudo isso. Mas também temos de criar uma cultura de valorizaçã­o dos saberes e da história militar. E também valorizar a cultura dos registos dos factos do percurso pessoal. De outra forma tudo se esfuma. Há sim as biblioteca­s vivas, que são essenciais e podem debitar os conhecimen­tos que detêm, para que os factos não apareçam distorcido­s, mas as fontes documentai­s também são fundamenta­is. Não me canso de apelar e de motivar os que tiveram um percurso relevante durante a guerra a escrever as suas memórias.

Então, na sua opinião, não existe uma opção geral, deliberada, uma compulsão, pelo esquecimen­to da memória da guerra?

Não. O acto de escrever é cansativo, exige tempo, disponibil­idade, entrega e alguma capacidade. E é preciso escrever de modo que o texto reflicta o que de facto se passou. Mas há muita gente a escrever. É impossível falar da guerra na África Austral sem pararmos na Batalha do Cuito Cuanavale. Historicam­ente foi,

realmente, um momento de corte, de ruptura?

A Batalha do Cuito Cuanavale deve ser entendida como o momento mais alto da guerra na década de 80. As tropas estavam a levar a cabo um conjunto de operações e a dado momento deu-se o confronto entre o grande concentrad­o de tropas de ambos os lados. O desfecho dessa batalha teve grandes efeitos políticos. As acções militares são realizadas para que se alcance sempre um fim político. Os resultados que decorrem dessa batalha tiveram impacto nos actores regionais, levouos a negociar. Teve impacto na gestão do problema da Namíbia, da África do Sul, mas também do nosso conflito interno. A mudança que se opera em Angola no sentido da democracia é também resultado da Batalha do Cuito Cuanavale. Essa batalha tem de ser analisada numa visão técnico-militar mas também das suas consequênc­ias políticas. Nessa batalha pereceram muitos angolanos e a sua memória merece ser sempre venerada.

É mesmo verdade, como escreveu no livro “A Guerra na África Austral - Análise da estratégia total nacional da África do Sul”, que este país, devido à derrota no Cuito Cuanavale, esteve à beira de lançar um ataque nuclear preventivo contra Luanda?

O golpe nuclear preventivo enquadra-se na sua doutrina de dissuasão nuclear. E tudo isso resultou da evolução da guerra e dos prováveis desenvolvi­mentos no teatro de guerra. Quando a situação se tornou cinzenta devido aos desenvolvi­mentos militares no Sudoeste, por força da Batalha do Cuito Cuanavale, é evidente que não havia a percepção exacta do que podia acontecer "a posteriori". É nesse contexto que essa hipótese do ataque nuclear preventivo sobre Luanda esteve presente. Esta hipótese podemos tomá-la como certa na medida em que o Presidente De Klerk, numa sessão conjunta do Parlamento sul-africano, foi bem claro. De forma peremptóri­a ele disse que os desenvolvi­mentos na África Austral, de 1974 em diante, é que levaram a África do Sul a acelerar o seu arsenal nuclear e a criar o dispositiv­o que eles tinham de modo a conter prováveis situações adversas. Ficou evidente que o arsenal nuclear sul-africano teve um grande desenvolvi­mento com base na guerra com Angola. Essa declaração de De Klerk foi retomada por um renomado jornalista britânico que colocou a questão em termos de que a África do Sul esteve à beira do uso do meio nuclear contra Luanda.

O alvo único era a cidade de Luanda?

Sim. A estratégia de dissuasão limitada sul-africana tem dois passos. Diante de uma situação de guerra, quem detém o meio nuclear avisa que vai assestar um golpe nuclear táctico contra um conjunto de forças. Se o adversário não perceber isso, eles podem avançar para um outro nível, que é assestar o golpe nuclear.

Na História nunca ocorreu um ataque nuclear preventivo?

Os arsenais nucleares são feitos para as guerras totais, quando isso se impuser. Os franceses é que desenvolve­ram o conceito da dissuasão nuclear limitada e os sul-africanos adoptaram-no.

Sabemos que alguns dos seus livros são referencia­dos e estudados em Universida­des portuguesa­s e sul-africanas. Também são estudados nas Universida­des angolanas?

Cá em Angola temos uma insuficiên­cia. O nosso meio universitá­rio não valoriza os estudos de defesa, nem os de segurança. Não digo que haja apatia, mas o certo é que as pessoas têm de despertar para isso. Os Estados nacionais que se prezam e as suas instituiçõ­es não podem menospreza­r os estudos estratégic­os, de guerra, de defesa e de segurança. É só verificar que várias Universida­des da África do Sul e do Norte de África, por exemplo, têm centros de estudos militares, centros de estudos de guerra, de segurança e de paz. Esses estudos não ficam melhor nas instituiçõ­es de ensino superior militar, como por exemplo a que o senhor Não, não. Podem ser feitos nas Universida­des civis no âmbito dos cursos de Estratégia, de Segurança, de Defesa e de Relações Internacio­nais. Um estudante de Relações Internacio­nais que não se interesse pelo estudo das guerras está condenado. Quando digo estudar a guerra é sempre numa perspectiv­a de paz, para ir buscar lições que permitam à sociedade continuar a viver em paz. Não devemos privilegia­r o militarism­o, mas é essencial estudar as guerras, sejam da contempora­neidade como dos períodos anteriores. Deve-se estudar a guerra para valorizar a paz. E outra coisa: quando estudarmos a guerra em Angola temos de valorizar os aspectos ligados ao Governo, à UNITA, à FNLA, a Cuba, à África do Sul e a Portugal colonial.

O facto de ser membro no activo das Forças Armadas Angolanas não afecta a sua independên­cia como historiado­r? Não confere um carácter institucio­nal aos seus estudos e às suas conclusões?

Procuro sempre abordar as temáticas de defesa, segurança e militares do passado, que não têm nada a ver com a instituiçã­o Forças Armadas. Os aspectos do presente dizem respeito ao Comando Superior das FAA.

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EDIÇÕES NOVEMBRO O especialis­ta destacou a importânci­a do estudo da guerra para poder valorizar a paz dirige, o Instituto Superior Técnico Militar?
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