Quando a Lua cheia convida à leitura
Por mais alinhados que sejam os arruamentos das novas urbanizações, há um não sei o quê de musseque escondido em cada um, por mais preocupados que andemos com as várias nuances da crise que estamos com ela, camuflada na escama – comeu payeta, pensam os kudibotas, mas é mentira, ele comeu mesmo lambula, katé lhe sentimos no cheiro na hora de assar; era lambula gorda, podíasse ouvir quando a gordura estava a cair no carvão, a apagar as brasas paf-paf parece eram salpicos de água.
Se o betão dos novos edifícios tenta, de alguma forma, apartar as pessoas, cada-um-cada-qual, sem ligar ao próximo quanto mais ao distante, unemlhes os odores do mufete nas tardes de fim-de-semana e o som alto da kizomba. Afinal, é sábado, amanhã ninguém trabalha e sempre é melhor que o barulho do Fofandó, perigosamente mantido no corredor entre dois vasos de cimento com plantas artificiais porque em casa a água é rara, ainda nas brasas de carvão puseram lá cerveja.
Vinho só tem um garrafão a passar de fininho por debaixo da mesa, quem não chora não mama. Água para beber só há engarrafada, comprada na cantina do Mamadú - lhe falam é senegalês, os documentos dizem ser maliano, mas ele próprio segreda que é guineense, de Bissau, muçulmano sim, até porque só vende salsichas de frango, nada de chouriços nem carnes de porco, cigarros agora já vende, cerveja não, apenas sumos e água fresca, a TV sempre ligada num canal qualquer que só fala em francês.
No espaço entre a estradaa que vai e a estrada que vem cresceu um bairro, barracas de chapa e papelão onde era para haver plantas, relva foi o que disseram, mas nunca semearam, só algumas xandalas resistem a fazer lembrar os antigas piteiras, catos que costumavam crescer nas areias da Ilha, no meio dos pedregulhos e blocos de cimento do quebra-mar, ali junto à rotunda da Peixeira, no Lello; nos becos vendia-se cerveja e gasosa, tomava-se café aguado misturado com kapuka, cigarros avulso e tacos de diamba, as damas de mini-saia ou collants e blusas decotadas, os rapazes com os lábios avermelhados, olhos cor de sangue, todos sem lenço nem documento, ninguém sabia as suas verdadeiros graças, apenas as alcunhas, nomes de jogadores de futebol, sobretudo, africanos – George Weah, Roger Milla – mas também europeus – Zidane, Cistiano Ronaldo – e latino-americanos – Maradona, Messi, Neymar.
Um dia foram camionisticamente deserenraizados, mas teimam em manter as raízes – União Mundo é a tradição –, o Carnaval a rasgar o tapete negro, falam é asfalto, mas de alcatrão quase nada tem, mais parece que borraram só o chão, a terra batida onde, naquele dia há muito tempo, a Avó Ximinha rasgava estradinhas – kuakié, makezu, makezué!
Mas, entre os dedos e nas unhas dos pés ainda mantêm alguns grãos de areia da praia, de tanto fungulular à procura de quitetas para vender no velho Tamariz, medidas em latas de margarina de um quilo e ganharem alguns trocados para comprar bilhetes da matineé no cine Kipaka – nós, os da Ilha, com o sal do mar nos cabelos a assistir ao “Trinitá, Cowboy Insolente” ali bem perto do Bungo, onde abundavam kafukafukas a cavar buraquinhos na areia, armadilhas mortais para as kassumunas que gostam de morder nas nédegas dos mais pequenos entretidos no jogo da Mamã Muxaxa.
Mais valia ainda a roubar pão no saco de pano sempre pendurado na parede da cozinha com letras bordadas à mão e ir na “praia pequena” pôr um bocado de miolo entre as mãos e começar a cantar “João Colé, João Coloco” para chamar as mujas. Muja é bom isco para apanhar tirlicos. Sopra-se e elas ficam cheias de ar, a boiar de barriga para cima. Os pássaros não resistem e acabam presos pelo bico nos anzóis de matona. Então, é só dar folga na linha de nylon feita de pedaços de 4/5 metros previamente desentrançados dos cabos das redes e das âncoras das traineiras, amarrados um a um com cuidado para os nós não ficarem demasiado grandes nem com as pontas soltas porque assim embaraçam muito e há quase sempre que cortar e voltar a amarrar – nova emenda nunca é igual à original.
O bairro é uma espécie de fronteira do asfalto dos novos tempos, nos becos onde brincam os candengues bebe-se cerveja e fuma-se diamba, na cubata de chapa e papelão tem parabólica e AC, mas o chão nem ainda cimento se tem quanto mais mozaico, as panelas do funji misturadas com as canecas de plástico e copos de vidro. “Onde já se viu uma coisa dessas? – atira a avó.
– Miúda assim não pode arranjar marido. Tem de aprender boas maneiras para ir na casa da sogra nas vivendas do Zango ou nos apartamentos do Kilamba. Vai lhe acontecer como a mãe, cada filho com pai dele, todos a comer e a vestir nas custas da minha kissângua. Vá lá a magoga agora está a andar bem, se não era mesmo só o geladinho de múcua.
A velha retoca a fala com um sonoro muxoxo, sem se importar com a nossa presença, nós ali mesmo encostados na viatura do amigo que ia nos levar na Baixa, a fumar e a ler o romance “Olhar de Lua Cheira de Albino Carlos, com o qual venceu o Prémio de Literatura António Jacinto.
Na página 19 desta edição dada à estampa pelo Instituto Nacional das Indústrias Culturais, Albino Carlos escreve e nós ousamos aqui reproduzir, até porque este exemplar é nosso, comprámos há dias numa livraria ali mesmo na Baixa da cidade:
“Se todos os becos dos musseques têm uma data de segredos, contudo, não guardam confidência nenhuma: plano ali arquitectado, amor ali confessado ou atraiçoado, o sigilo dura somente o espaço de tempo que leva entre o desmaiar da lua e o nascer do sol: os becos, de mercador não gabam ouvidos e respiram falando através das paredes.”
E, se não bastasse o livro falar-nos na Xicala, “uma espécie de ilhota da Ilha do Cabo, o calcanhar da Ilha de Luanda”, segundo o autor, ainda vem José Luís Mendonça lhe adoçar no Prefácio: “Albino Carlos vem provar nesta obra que a realidade angolana é tão assombrosamene inédita que se confunde com a própria ficção, uma ficção realizada na luta diária com os fantasmas da vida, como diria Agostinho Neto, fantasmas diluídos nas lágrimas das mulheres, e quem diz mulheres diz toda a comunidade pois é sabido que as mulheres são os alicerces da sociedade.”