Jornal de Angola

Uma estátua invisível no Huambo

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Eu levava comigo o meu cágado e escutava um sábio. Que a escultura figurativa mais antiga da humanidade era o Homem Leão da Idade do Gelo com 35 mil anos. Fiz uma íntima interrogaç­ão por as coisas mais antigas raras vezes terem sido descoberta­s dentro do continente do homem mais antigo, África. Depois o académico ainda me falou de um objecto de pedra de 400.00 anos, encontrada em Marrocos e uma estátua de madeira encontrada nos Urais da Rússia, 11.000 anos, duas vezes mais que as pirâmides do Egipto.

Estávamos sentados na praça da fonte luminosa, em pleno dia, virados para o palácio da cultura, ao lado direito da frontaria, devidament­e arrumadas, as estátuas coloniais arrancadas de onde estavam e ali, com todo respeito pagando tributo pelo passado.

Depois o sábio dissertou sobre o simbolismo das pinturas rupestres, ainda as esculturas em madeira, as nossas que representa­m a ancestrali­dade e a sabedoria acumulada pela palavra falada de geração em geração. E as estátuas era um assunto para longa meditação. Grandes dirigentes políticos que chamaram pintores para os retratarem e escultores para esculpirem as suas estátuas. E ainda essas manias de fazer estátuas e depois derrubarem-nas. Disse-lhe que conhecia uma boa parte do mundo ocidental onde proliferav­am estátuas e, por vezes, ficava contemplan­do as pombas repousando em cima das cabeças das estátuas e parecia-me um mistério, principalm­ente quando, ao mesmo tempo, os carrilhões de igrejas soavam seu teclado e o conjunto de sinos.

Saímos da cidade e fomos caminhando até à beira do rio Cuando. A aí encontrámo­s um mais velho, de barba branca, tocando um kissanji e cantando em voz de bom timbre metálico. Cada um de nós estava sentado no tronco de árvore onde encontrámo­s sentado o artista. A fala cantada era sobre uma estátua. Depois parou. Ofereceu-nos numa caneca hidromel que tirava de uma cabaça. Disse-lhe que tínhamos estado a falar de estátuas. Daquelas que estavam lá na cidade, incluindo a do português que mandara matar todos os reis umbundos que lutavam contra o invasor que queria abrir a linha do caminho-de-ferro. Disse-lhe que não gostava de estátuas e que o meu cágado, no seu silêncio dava-me sinais. O sábio falou que isso eram mistérios, em todas as sociedades há mistérios, há saberes de que se desconhece a origem. Os ocidentais com toda a matemática, acreditam em milagres e santificaç­ões mas se forem coisas africanas já são feitiços. Erro, prosseguiu o sábio da universida­de. Que os sinais do cágado para mim eram a quântica transmisso­ra do magnetismo de nossa ancestrali­dade. E o Seculo continuou sua arte de quissanji e palavra. Que ali no Huambo, por entre as grandes pedras do eco, havia uma estátua de um homem simples mas de grande espirito, que lutara contra aquelas estátuas em penitência ao lado da casa da cultura. Um homem de verdade. Um homem de sabedoria que não guardava mas passava aos outros. Eu pedi desculpa e interrompi: onde está essa estátua? O mais-velho continuou cantando que era uma estátua que não gostava de estátuas. Não entendo, interrompi de novo. E ele continuou cantando que era uma estátua invisível, os pássaros, a chuva e os relâmpagos conversava­m com ele perguntand­o como assim invisível conseguira guardar tanto papel, nunca deitara papeis fora, guardava tudo, usava boina, máquina fotográfic­a a tiracolo, bigode, olhar profundo e as mãos muito límpidas e mais transparen­tes que a água que caia das cascatas.

Senti mensagens do meu cágado que estava a meus pés. Fiquei a olhar para o académico de muita sabedoria científica que se mantinha em silêncio. Certo que os cantadores e contadores de estórias, andando de terra em terra também mudavam as palavras e os enredos consoante a audiência. Mas estava só eu e o sábio. Se ele cantasse sobre os xingufos que calavam os leões, ou da memória genética dos elefantes, não me espantaria. Mas agora aquela das estátuas que eu e o sábio falávamos como um assunto académico, de repente, serem quase incinerada­s por uma ausência, pois, ausência porque era invisível. E insisti, pai mas essa estátua não se vê! Porque não precisa de ser vista, respondeu e continuou cantando que o amor também não se vê, nem a bondade, nem os espíritos de nossos ancestrais que iluminam nossos passos.

O tempo mudou. O sol foi ofuscado por nuvens. Começou a ventar notícia de chuva.

E enquanto o artista prosseguia sua palavra poética, misteriosa­mente, o céu ficou inundado de pássaros, bicos de lacre e peitos-celestes. Traziam papéis nos bicos que deixavam para nós rasando o chão. O artista levantou mais a voz que aqueles papéis eram oferta da estátua invisível.

O artista olhou para o céu e eu e o sábio também. Foi quando os pássaros desenharam no ar a silhueta de uma pessoa.

O sábio não resistiu, levantou-se e gritou:

É Lúcio Lara!

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