Mensagem do Dia Mundial da Dança
Arte. Profissionais. Criadores. Entretenimento. Diferença. Fazedores. Intelecto. Liberdade criativa – pontos para uma reflexão.
Numa data em que se celebra o nascimento do coreógrafo Jean Georges Noverre, a CDC Angola desafia a sociedade para uma reflexão mais alargada, a qual convoca os propósitos deste teórico francês, ao exigir para a dança um estatuto profissional quando, há quase 300 anos, defendeu a necessidade de um suporte teórico e técnico para os professores, coreógrafos e bailarinos. Embora esta questão seja alvo da nossa insistência propomo-nos, desta vez, realçar um aspecto que esteve subjacente às reformas que Noverre estabeleceu. Ao reivindicar a criação de obras exclusivamente dançadas e com uma linha narrativa autónoma, ele pretendia desviar a dança do papel meramente subsidiário e de artifício que esta possuía dentro dos grandes espectáculos de ópera, o que nos remete para um conjunto de questões como, por exemplo, o significado de Arte e de entretenimento, a diferença entre profissionais e “fazedores” ou o conceito de liberdade criativa. Porque, no nosso país, estes termos estão ainda desprovidos de contornos precisos, é fundamental circunscrever, ainda que de forma resumida, cada um deles.
Se o entretenimento tem como propósito a distracção e é sinónimo de lazer, a Arte desenvolve-se a nível das sensibilidades, conduzindo-nos a uma redefinição simbólica e levando-nos mesmo ao questionamento sobre a complexidade da nossa própria natureza. Enquanto a Arte, com as suas linguagens codificadas, nos obriga à reflexão, o entretenimento, com os seus padrões fáceis e repetitivos, com os seus lugares comuns popularizados e com todo o aparato de reprodução das indústrias culturais, pretende, justamente, o contrário; enquanto a arte nos leva a pensar sobre as adversidades da condição humana, o entretenimento desempenha a função inversa de nos fazer esquecer os problemas da nossa existência.
Resumo 1: Se o entretenimento nos inibe o raciocínio, a Arte, pelo contrário, é um desafio ao nosso intelecto.
Por seu lado, a diferença entre “fazedores” e artistas profissionais é consubstanciada pela evidência democrática de que fazer cultura é um direito de todos, mas que contrasta com a realidade “elitista” de que ser artista é uma actividade restrita àqueles que, para além de serem naturalmente dotados, potenciam as suas qualidades através de uma formação selectiva que os dota de habilidades especializadas e exclusivas.
Fazedores de arquitectura ou arquitectos? Fazedores de direito ou advogados? Fazedores de pedagogia ou professores de várias disciplinas? Fazedores de medicina ou médicos de várias especialidades? Então qual a razão da utilização única deste termo genérico e redutor – que uniformiza, esbate ou elimina as diferenças – e não a especificação de profissionais das Artes onde se distinguem, entre outros tantos, pintores, actores, compositores, bailarinos, coreógrafos e mesmo os técnicos com especializações, ligados ao espectáculo?
Apelidar coreógrafos e bailarinos de meros “fazedores” é retirarnos a singularidade e o orgulho de termos adquirido um conhecimento científico teórico e prático, num dos mais longos e exigentes processos de formação (nunca inferior a 8 anos).
Resumo 2: Se, de um “fazedor”, apenas se espera que faça; de um profissional exige-se que saiba porquê e como fazer.
Por último, e como defendeu Noverre, para se ser artista criador há que ter, além de uma base cognitiva sólida, um conhecimento profundo e abrangente da natureza humana, dos afectos, dos conflitos, da essência psicológica, acrescentando-se que um criador contemporâneo utiliza as distintas linguagens artísticas para expressar a sua visão pessoal do mundo e dos contextos que o envolvem.
Desafortunado é o artista que não possui ideias próprias e que não pode (ou não quer), por pressões de diversa índole, criar livremente sem quaisquer condicionantes. Ser livre é ter a capacidade de poder construir mundos imaginários. E esta liberdade é restrita aos Artistas. O único propósito da Arte é existir; sem quaisquer obrigações ou objectivos a priori. A Arte não se fabrica; ela acontece.
O artista é, por natureza, inquieto, insatisfeito, irreverente, mas deve ter “ideias originais”, ou seja, criatividade. Por outro lado, o artista enquanto intelectual deve ser, com as capacidades que possui, um interveniente social. A ele cabe surpreender, abanar, chocar, alertar. Sem o fazer de forma gratuita, espera-se dele a coragem e a responsabilidade de enfrentar, confrontar, produzir um olhar crítico e fundamentado, que leve os outros à vontade de transformar, impedindo a acomodação e a resignação.
Resumo 3: Apesar dos conceitos de arte e de artista serem controversos e com graus de abrangência variáveis, é indiscutível que devem passar pelo talento natural, por um saber especializado e por uma nota de genialidade que conferem ao artista o poder de ser livre, único, original e genuíno para criar e partilhar os universos artísticos por si idealizados. O artista pode fazer entretenimento? Sim, mas entretenimento não é necessariamente arte. Os “fazedores” podem fazer arte? Talvez, mas não são profissionais. Todos podem ter ideias geniais? Não e apenas os artistas são capazes de conceber e codificar, de materializar e sustentar obra, recorrendo às diversas linguagens artísticas.