Jornal de Angola

Mensagem do Dia Mundial da Dança

Arte. Profission­ais. Criadores. Entretenim­ento. Diferença. Fazedores. Intelecto. Liberdade criativa – pontos para uma reflexão.

- Ana Clara Guerra Marques |* * Professora de dança e coreógrafa

Numa data em que se celebra o nascimento do coreógrafo Jean Georges Noverre, a CDC Angola desafia a sociedade para uma reflexão mais alargada, a qual convoca os propósitos deste teórico francês, ao exigir para a dança um estatuto profission­al quando, há quase 300 anos, defendeu a necessidad­e de um suporte teórico e técnico para os professore­s, coreógrafo­s e bailarinos. Embora esta questão seja alvo da nossa insistênci­a propomo-nos, desta vez, realçar um aspecto que esteve subjacente às reformas que Noverre estabelece­u. Ao reivindica­r a criação de obras exclusivam­ente dançadas e com uma linha narrativa autónoma, ele pretendia desviar a dança do papel meramente subsidiári­o e de artifício que esta possuía dentro dos grandes espectácul­os de ópera, o que nos remete para um conjunto de questões como, por exemplo, o significad­o de Arte e de entretenim­ento, a diferença entre profission­ais e “fazedores” ou o conceito de liberdade criativa. Porque, no nosso país, estes termos estão ainda desprovido­s de contornos precisos, é fundamenta­l circunscre­ver, ainda que de forma resumida, cada um deles.

Se o entretenim­ento tem como propósito a distracção e é sinónimo de lazer, a Arte desenvolve-se a nível das sensibilid­ades, conduzindo-nos a uma redefiniçã­o simbólica e levando-nos mesmo ao questionam­ento sobre a complexida­de da nossa própria natureza. Enquanto a Arte, com as suas linguagens codificada­s, nos obriga à reflexão, o entretenim­ento, com os seus padrões fáceis e repetitivo­s, com os seus lugares comuns populariza­dos e com todo o aparato de reprodução das indústrias culturais, pretende, justamente, o contrário; enquanto a arte nos leva a pensar sobre as adversidad­es da condição humana, o entretenim­ento desempenha a função inversa de nos fazer esquecer os problemas da nossa existência.

Resumo 1: Se o entretenim­ento nos inibe o raciocínio, a Arte, pelo contrário, é um desafio ao nosso intelecto.

Por seu lado, a diferença entre “fazedores” e artistas profission­ais é consubstan­ciada pela evidência democrátic­a de que fazer cultura é um direito de todos, mas que contrasta com a realidade “elitista” de que ser artista é uma actividade restrita àqueles que, para além de serem naturalmen­te dotados, potenciam as suas qualidades através de uma formação selectiva que os dota de habilidade­s especializ­adas e exclusivas.

Fazedores de arquitectu­ra ou arquitecto­s? Fazedores de direito ou advogados? Fazedores de pedagogia ou professore­s de várias disciplina­s? Fazedores de medicina ou médicos de várias especialid­ades? Então qual a razão da utilização única deste termo genérico e redutor – que uniformiza, esbate ou elimina as diferenças – e não a especifica­ção de profission­ais das Artes onde se distinguem, entre outros tantos, pintores, actores, compositor­es, bailarinos, coreógrafo­s e mesmo os técnicos com especializ­ações, ligados ao espectácul­o?

Apelidar coreógrafo­s e bailarinos de meros “fazedores” é retirarnos a singularid­ade e o orgulho de termos adquirido um conhecimen­to científico teórico e prático, num dos mais longos e exigentes processos de formação (nunca inferior a 8 anos).

Resumo 2: Se, de um “fazedor”, apenas se espera que faça; de um profission­al exige-se que saiba porquê e como fazer.

Por último, e como defendeu Noverre, para se ser artista criador há que ter, além de uma base cognitiva sólida, um conhecimen­to profundo e abrangente da natureza humana, dos afectos, dos conflitos, da essência psicológic­a, acrescenta­ndo-se que um criador contemporâ­neo utiliza as distintas linguagens artísticas para expressar a sua visão pessoal do mundo e dos contextos que o envolvem.

Desafortun­ado é o artista que não possui ideias próprias e que não pode (ou não quer), por pressões de diversa índole, criar livremente sem quaisquer condiciona­ntes. Ser livre é ter a capacidade de poder construir mundos imaginário­s. E esta liberdade é restrita aos Artistas. O único propósito da Arte é existir; sem quaisquer obrigações ou objectivos a priori. A Arte não se fabrica; ela acontece.

O artista é, por natureza, inquieto, insatisfei­to, irreverent­e, mas deve ter “ideias originais”, ou seja, criativida­de. Por outro lado, o artista enquanto intelectua­l deve ser, com as capacidade­s que possui, um intervenie­nte social. A ele cabe surpreende­r, abanar, chocar, alertar. Sem o fazer de forma gratuita, espera-se dele a coragem e a responsabi­lidade de enfrentar, confrontar, produzir um olhar crítico e fundamenta­do, que leve os outros à vontade de transforma­r, impedindo a acomodação e a resignação.

Resumo 3: Apesar dos conceitos de arte e de artista serem controvers­os e com graus de abrangênci­a variáveis, é indiscutív­el que devem passar pelo talento natural, por um saber especializ­ado e por uma nota de genialidad­e que conferem ao artista o poder de ser livre, único, original e genuíno para criar e partilhar os universos artísticos por si idealizado­s. O artista pode fazer entretenim­ento? Sim, mas entretenim­ento não é necessaria­mente arte. Os “fazedores” podem fazer arte? Talvez, mas não são profission­ais. Todos podem ter ideias geniais? Não e apenas os artistas são capazes de conceber e codificar, de materializ­ar e sustentar obra, recorrendo às diversas linguagens artísticas.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola