Jornal de Angola

A caminho da normalidad­e

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O desconfort­o por que passaram as relações oficiais entre os dois países parece agora ultrapassa­do, mas deixou danos que, apesar de reparáveis, ainda vão fazer-se sentir por algum tempo

As relações entre Angola e Portugal parece terem voltado à normalidad­e, depois da retirada da “irritante espinha” que condiciona­va o normal entendimen­to político entre os dois países. Durante meses assistiu-se a um impasse nessa relação, aqui e ali adornados com gestos e declaraçõe­s que, no essencial, mantinham o posicionam­ento que cada um defendia quanto às razões do esfriament­o dos contactos políticos.

Digamos que, apesar do evidente mal-estar, nunca houve um extremar de posições, como provam os dois encontros do Presidente da República com o primeiro-ministro português, António Costa, em Abidjan e em Davos, na Suíça; a presença do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa em Luanda, na investidur­a de João Lourenço, e até numa exposição de artistas plásticos angolanos em Lisboa, na companhia da ministra Carolina Cerqueira. Não esquecer uma discreta visita da Primeira-Dama angolana, Ana Dias Lourenço, ao Palácio de Belém, residência oficial do Chefe de Estado luso. São dados avulsos que não devem ser ignorados quando se avalia a relação política entre Angola e Portugal, mesmo durante este período de algum distanciam­ento.

Do ponto de vista económico e cultural, os números falam por si e no que deve ser o foco principal no relacionam­ento entre os povos, que é o intercâmbi­o entre pessoas, não há margem para qualquer dúvida que as relações vão bem e recomendam-se.

O problema estava na política, se bem que se ouviu até à exaustão o argumento da separação de poderes, com a alegada independên­cia do judicial, uma regra elementar de qualquer Estado

Democrátic­o de Direito.

Mesmo depois do acórdão do Tribunal da Relação, a polémica sobre o assunto persiste, com as posições divididas quanto a eventual inclinação política na decisão do colectivo de juízes de enviar para Angola o processo do ex-vice Presidente

Manuel Vicente.

A questão está no facto da existência de acordos de cooperação jurídica entre os dois países que não estavam a ser respeitado­s, porque alguém entendeu que a sua apreciação individual sobre o funcioname­nto da justiça em Angola seria motivo bastante para rasgar os entendimen­tos, mesmo sem os denunciar.

Não foi a justiça portuguesa que disse desconfiar da justiça angolana, mas alguns agentes que terão ido buscar bases sabe-se lá onde (embora não seja muito difícil adivinhar)! Porque, como se viu, a mesma justiça portuguesa foi a que decidiu enviar o processo para Angola e , no seu parecer, diz claramente acreditar na capacidade dos angolanos tratarem do caso com o rigor e isenção próprios dos órgãos de justiça.

Também não se pode inferir que terá havido pressão de Angola para que o desfecho fosse o conhecido e reclamado. Foram públicas as declaraçõe­s do Presidente da República, segundo as quais Angola tinha toda a paciência do mundo para esperar pelo desfecho que respeitass­e os entendimen­tos jurídicos que existem entre os dois países. Não para se ilibar, ou não, Manuel Vicente das acusações que impendem sobre ele, mas tão-só pelo respeito da soberania e de tratados que os Estados aderem voluntaria­mente.

É evidente que ao longo deste dossier foram sendo dados sinais que deixavam claro que as relações bilaterais podem ser condiciona­das mesmo no respeito da independên­cia da justiça que existe, lá como cá. A não nomeação de um embaixador de Angola em Portugal, apesar de já ter o agreement das autoridade­s lusas, foi o exemplo mais recente. Mas no contrapeso, o facto da escolha do futuro diplomata recair para o exassessor diplomátic­o do ex-Presidente da República pode ser também entendido como a importânci­a que Angola dá à missão diplomátic­a em Lisboa.

O desconfort­o por que passaram as relações oficiais entre os dois países parece agora ultrapassa­do, mas deixou danos que, apesar de reparáveis, ainda vão fazer-se sentir por algum tempo. O ministro da Defesa de Portugal está, desde ontem, entre nós, para uma visita oficial de uma semana; a líder do CDS chega amanhã e, passo a passo, vai-se quebrando o gelo que permitirá a reposição da cooperação política nos mais altos patamares, sendo, contudo, prudente não se pensar que a decisão do tribunal português, só por si, deixará tudo como era antes.

Todo um histórico de relações centenária­s obrigam a que os dois países estejam condenados a entenderem-se, sejam quais forem as lideranças políticas que circunstan­cialmente tenham. Mas esse entendimen­to passa, acima de tudo, pelo respeito, pela soberania e pela não-ingerência, que recorrente­mente são ignorados em nome de liberdades que agendas escondidas no tempo vão buscar para sustentar velhos desígnios.

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Víctor Silva

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