Jornal de Angola

Crianças nocturnas

- Luísa Rogério

Numa cidade como Luanda, geralmente escura e com altos índices de criminalid­ade, estudar à noite já é complicado para adultos. Para crianças só piora. Tratando-se de meninas, almejam-se doses extraordin­árias de crença no Divino para garantir a segurança das crianças.

Situação estarreced­ora. Revoltante! E outras inumerávei­s expressões! Todas juntas e mais algumas são escassas para definir o estado de ânimo decorrente da leitura da reportagem sobre a inserção de crianças no ensino nocturno publicada pelo Jornal de Angola. A descrição da realidade na escola 1009, também conhecida como “17 de Setembro”, remete o leitor para um cenário indesejáve­l. A bata branca de Cecília Kiambata, a menina de rosto franzino que carrega a mochila às costas, encarrega-se das apresentaç­ões. Trata-se de uma estudante. Com aproximada­mente 13 anos, frequenta a 7ª classe. Mas não regressa para casa quando o relógio sinaliza 17h30. Ela vai para escola, mal se anuncia o pôr do Sol. Cecília é uma das muitas crianças que estuda à noite, altura em que deveria estar protegida de todos os riscos que podem emergir na noite escura.

Nesse ponto da leitura apetece fechar o jornal. Atirá-lo para um canto qualquer, ignorar a matéria e fingir que não a tinha visto. Mas o apelo das meninas da foto é demasiado forte. Os olhares entristeci­dos continham silencioso­s gritos de socorro. A imagem cumpriu a sua missão. Destapou a dolorosa realidade, mostrando factos que não foram produzidos pela ficcionist­a mente cinematogr­áfica do repórter César Esteves, como alguns leitores deslocados do contexto teriam coragem de sugerir. Estamos a falar de crianças a entrar na fase de adolescênc­ia. De seres que deixaram precocemen­te de brincar e de interagir com os pais ou outros familiares detentores da sua tutela que terminam a jornada laboral quando elas saem de casa para ir à escola.

Impossível imaginar a angústia de familiares das crianças transforma­das em estudantes nocturnas pela ausência de vagas no sistema. Fátima Kiambata, a mãe de Cecília, descreve o sofrimento por que passam todos quantos respiram de alívio apenas no momento em que os seus filhos retornam à casa. Numa cidade como Luanda, geralmente escura e com altos índices de criminalid­ade, estudar à noite já é complicado para adultos. Para crianças só piora. Tratando-se de meninas, almejam-se doses extraordin­árias de crença no Divino para garantir a segurança das crianças. Matricular no período nocturno filhos que, em condições normais não deveriam sair de casa sozinhos, evidencia decisão de altíssimo risco por parte de pais consciente­s do poder transforma­dor da educação.

A educação, soe dizer-se, é o melhor caminho para a mudança. É a porta segura do conhecimen­to legitimado numa instituiçã­o formal de ensino. Precisamen­te por isso não se compreende a “realidade invulgar” descrita por um responsáve­l da escola 17 de Setembro. O registo de um único caso nos colocaria diante de uma grave anomalia. Evidenteme­nte tal acontece devido ao “grande défice” citado na reportagem. Grande défice não apenas de escolas do primeiro ciclo no Distrito Urbano da Samba, conforme justifica o responsáve­l. Há também o presumível grande défice de diferentes itens, a começar por sensibilid­ade e políticas integradas. Ao se projectar a construção de escolas é expectável que se considerem aspectos demográfic­os com particular realce para o cresciment­o da população.

Certamente existirão explicaçõe­s para o fenómeno integração de crianças no ensino nocturno. Não nos espantemos que algumas vozes aprimorem desculpas propositad­amente encapuzada­s por linguagem técnica não descodific­ada pelo leitor comum. Conceber programas exequíveis e traçar caminhos é, obviamente, tarefa de especialis­tas. Educação integra o selecto grupo de sectores onde tem que ser a cientifici­dade a ditar regras. Não combina com amadorismo. É um sector de prioridade absoluta por razões que dispensam argumentaç­ões. Não podemos aceitar o consolo da impotência. Não se brinca assim com o futuro.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola