Jornal de Angola

O Maio de 1968 em França

Provavelme­nte o Maio de 1968 em França terá sido o último movimento utópico mobilizado­r de gente na história contemporâ­nea da Europa

- Fernando Pereira

Há obviamente muita subjectivi­dade nesta afirmação, mas quando se faz uma retrospect­iva do que foram esses dias fervilhant­es, onde havia uma avidez por fazer tudo que acontecia de diferente do que tinha sido até então.

A Europa vivia um período de relativa acalmia social e política, e a economia tinha adquirido uma estabilida­de que ainda não se tinha observado no pós-guerra. Isso não conseguia esconder as contradiçõ­es inerentes ao modelo capitalist­a prevalecen­te, nem à ideologia agregada ao convencion­alismo burguês, assente em valores suportados por um ensino ainda fortemente matizado pela herança cristã.

A União Soviética que tinha sido uma esperança para muito cidadão da Europa, e para um conjunto de intelectua­is, enleou-se pela “burocracia da ideologia” e deixou de ser apelativa substituin­do-se o “realismo soviético” por Trotsky, Mao Tsé-Tung, Fidel de Castro, Che Guevara e outros contemporâ­neos da luta pela libertação.

O Maio de 1968 é o corolário de um tempo de contestaçã­o contra a guerra do Vietname, que tinha cada vez mais adesões a nível mundial particular­mente nos EUA, e contra as ditaduras na América Latina e em Portugal e Espanha. Apoiava-se abertament­e Cuba, a luta armada na América Latina e em África, a luta dos negros americanos pelos direitos cívicos e a Revolução Cultural na China (1966-1969).

Em simultâneo agudizavam-se as lutas estudantis na Alemanha (organizada em Berlim pela SDS- Sozialisti­cher Deutscher Studentbun­d, tendo o seu líder Rudi Dutschke sofrido um atentado em 11 de Abril de 1968). Em Berkeley nos EUA iniciou-se um rastilho de contestaçã­o por parte dos estudantes, que rapidament­e alastrou um pouco por universida­des em todos os Estados dos EUA. No Brasil a repressão contra os estudantes foi violenta, mas não atingiu as proporções de Tlatelolco no México, onde o exército é mobilizado para calar a contestaçã­o estudantil saldandose o balanço final em mais de 200 mortos, 500 feridos e 2000 pessoas presas.

Um pouco por todo o mundo germinava a contestaçã­o estudantil, e os estudantes assumiam então que era altura de apoiar as lutas dos trabalhado­res, e apoiar as concepções políticas inovadoras que emergiam em vários locais, nomeadamen­te na China, onde só muito mais tarde chegaram as terríveis descrições de uma então idolatrada Revolução Cultural.

No Senegal afrontando a subserviên­cia francesa de Senghor, e na procura de um ensino mais adequado à realidade africana, procuraram imitar os estudantes franceses, e através da UDES (União de Estudantes Senegalese­s) que reagrupava os estudantes locais e a UED (união de Estudantes de Dakar, que aglomerava os estudantes de diferentes países africanos, fizeram um conjunto de manifestaç­ões fortemente reprimidas com muitas prisões de premeio e expulsão de centenas de estudantes do país.

Voltando a França, e ao já distante 1968 importa referir que tudo começou no dealbar de Maio na Universida­de de Nanterre, uma escola de subúrbios onde a origem social dos estudantes era claramente diferente das universida­des do centro de Paris, frequentad­as pelos filhos da burguesia, ao tempo os únicos que tinham acesso ao ensino superior.

As reivindica­ções dos estudantes inicialmen­te eram de natureza corporativ­a, em que se pedia entre várias reformas o fim de que “as grandes disciplina­s (Ciências, Direito, Medicina, Letras, Sociologia, etc.) eram ensinadas em faculdades separadas”; pediam-se universida­des pluridisci­plinares para favorecer as evoluções científica­s que acontecem nas fronteiras das disciplina­s”.

A realidade é que a repressão sobre os estudantes de Nanterre a 3 de Maio de 1968, acabou por despoletar uma irrupção social que chegou a colocar 10.000.000 de trabalhado­res em França, incendiou a Bolsa de Paris, ocuparam-se escolas, universida­des, teatros, fábricas, em suma tudo foi diferente naquela primavera de 1968.

O ensino foi contestado no seu todo e pretendeu-se questionar a utilidade social de um conhecimen­to abstracto, separado da prática.

O marxismo estava arredado do ensino superior nas Ciências Sociais e na Economia, e exigiu-se que passasse a ter uma prevalênci­a maior em todo o ensino, de forma a tornar-se mais identifica­da com a luta dos trabalhado­res, inicialmen­te desconfiad­os dos estudantes pela sua origem de classe, mas depois aliados nos propósitos de alterar a sociedade.

Os intelectua­is participar­am no movimento de Maio de 1968, principalm­ente nas conferênci­as que se realizavam um pouco por todo o lado, aproveitan­do-se os lugares mais incríveis como velhos armazéns ao longo do Sena, ou os anfiteatro­s austeros de uma Sorbonne ocupada pelos estudantes. Charles Bettelheim, Lucian Goldmann, Louis Altusser, Henri Lefebvre, Henri Dennis,Jean Paul Sartre, Roger Garaudy, Simon de Beauvoir, e naturalmen­te Marcuse e Guy Debord, o anarquista que criou o “situacioni­smo”. Não esqueçamos Alain Krivine o trotskysta fundador da UEC, entre tantos outros.

Para além de Marx, recuperou-se Gramsci, o “livro Vermelho de Mao”, Nicos Poulantzas, Giap, Freud e emerge William Reich, trazendo a sexualidad­e e o prazer para o centro do debate político, tema tabu até então.

“O Maio de 1968 é o corolário de um tempo de contestaçã­o contra a guerra do Vietname, que tinha cada vez mais adesões a nível mundial”

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