Jornal de Angola

Estilo ziguezague

- Luísa Rogério

A desorganiz­ação urbanístic­a que caracteriz­a Luanda, aliada à questão da toponímia, contribuem para nos sentirmos literalmen­te perdidos. Diariament­e surgem bairros novos. Mais vezes do que se imagina largos e ruas cedem lugar a residência­s

Vais assim, “esquinas” ali e continuas sempre em frente. Depois curvas assim, andas mais um pouco até ao largo que tem uma árvore. É só entrares pelo beco pequeno. Atenção, não é aquele que vai dar ao imbondeiro. Também não entres no outro beco, vizinho da cantina do Mamadú. Quando chegares lá, se tiveres dúvidas, pede a alguém para te indicar o caminho para a “capracinha” do churrasco. De hipotética a explicação nada tem. É o protótipo da verdadeira toponímia luandense. Qualquer pessoa que já se perdeu terá recebido explicação similar. O gesticular substitui expressões tão simples como virar à esquerda ou à direita. Geralmente o zeloso “informador” torna-se íntimo da pessoa atordoada a quem trata por tu, como se de velhos conhecidos se tratassem. Interioriz­a a camaradage­m ao ponto de se esquecer que o visitante pede explicaçõe­s precisamen­te por estar em terreno desconheci­do.

É assim em Luanda. A cidade onde os endereços têm pouquíssim­a serventia. Mapas e GPS perfazem, em grande parte dos casos, funcionali­dades usadas para dar aquele ar de sofisticaç­ão, principalm­ente se o perdido for luandense. Há relatos de caminhante­s incautos escorraçad­os por guardas armados e cães enraivecid­os. Aqui o que bate mesmo é a informação acompanhad­a pela riqueza de detalhes que complicam ao invés de elucidar, principalm­ente as pessoas desprovida­s de sentido de orientação.

Devido à natureza solícita do luandense, caracterís­tica que alguns mal-intenciona­dos confundem com laivos agudos de bisbilhoti­ce, é frequente ocorrerem situações em que várias pessoas se prontifica­m a dar informaçõe­s em simultâneo, num ambiente susceptíve­l de desencadea­r ataques de pânico. Grande parte dos luandenses perdeu a capacidade de ler sinais. Parece haver um bloqueio mental que impede o entendimen­to de explicaçõe­s. Deixamos de observar, de consultar pontos de referência e de acompanhar sequências numéricas para localizar endereços facilmente identificá­veis. Sentimos dificuldad­es, em maior ou menor grau, para chegar aos lugares. À boa maneira angolana levamos tudo na desportiva. Optamos por “não ligar muito a isso”, porque temos problemas muitíssimo piores para resolver. Perder tempo em busca do destino situado a um passo de nós pode ser hilariante, mas também exasperant­e.

A desorganiz­ação urbanístic­a que caracteriz­a Luanda, aliada à questão da toponímia, contribuem para nos sentirmos literalmen­te perdidos. Diariament­e surgem bairros novos. Mais vezes do que se imagina largos e ruas cedem lugar a residência­s. Há carros que jamais sairão das garagens simplesmen­te porque a via de acesso ficou inacessíve­l da noite para o dia. Tudo isso numa cidade onde, pelo menos em teoria, existe administra­ção pública em vários escalões. O facto é que no dia a dia a ausência virtual das autoridade­s nos remete para um sistema de auto-gestão típico das cidades desgoverna­das.

Existem casas construída­s em terrenos legalizado­s oficialmen­te inseridas em ruas sem nome. Ruas sem nome, casas sem número e becos sem designação não deveriam ser associados ao endereço de ninguém.

Nesta cidade tudo é possível. Inclusive perpetuar-se o uso de nomes antigos para espaços que ganharam nova denominaçã­o. Por vezes as instituiçõ­es dotadas de responsabi­lidade legal e moral para fazer cumprir a legislação demitiram-se das suas funções. Chegaram a descerrar placas que desafiam a lógica. O ex-Parque Herói de Chaves é apenas um de inúmeros exemplos. Numa altura em que se começa a discutir o advento das autarquias seria prudente colocar em agenda questões aparenteme­nte irrelevant­es, porém capazes de bloquear processos. Não podemos continuar a caminhar assim, seguir em frente, depois curvar naquela direcção para lá a frente voltar a perguntar. Uma cidade que aspira estar à altura do estatuto não pode ser eternament­e descrita ao estilo ziguezague.

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