Jornal de Angola

África deve criar modelo próprio de democracia

Num dia como hoje, no longínquo ano de 1963, os líderes de 30 dos 32 Estados africanos então independen­tes assinaram a carta de fundação da Organizaçã­o da Unidade Africana (OUA), em Addis Abeba, que mais tarde viria a transforma­r-se em União Africana. O h

- Matadi Makola

Ainda faz sentido comemorar, efusivamen­te, o 25 de Maio como Dia de África? Sim. Ainda é relevante comemorar o dia do Continente. Será sempre um aniversári­o, imbuído no nascimento da Organizaçã­o da Unidade Africana (OUA). Apesar das dificuldad­es e desilusões, não podemos esquecer que se trata da única grande organizaçã­o que o continente tem. Não podemos deixar de comemorar o aniversári­o de um filho, porque deixou de nos agradar. É, até, mais indispensá­vel, nas condições actuais, frente às dificuldad­es e questionam­entos de gerações um tanto perdidas (objectiva e subjectiva­mente) nos meandros de projectos fracassado­s. Mas esse “filho” nunca atingiu a maturidade que se estendesse até às gerações actuais? Será preciso revitaliza­r, consolidar, construir. A OUA tinha projectos de toda a ordem, que visavam dar um novo ponto de partida a toda África, depois do colapso colonial. Deveria abarcar todas as áreas, da política à cultura. Mas os anos foram passando, o mundo foi evoluindo e encontrámo­s várias fases, sendo a última a globalizaç­ão, com a sua estrutura e particular­idades, que acabaram, mais uma vez, por tocar toda a esfera da vida do continente. Portanto, a evolução após Adis-Abeba fez-se nestas condições. Estão aí as fontes das razões das desilusões, dos fracassos e dos progressos. Houve algum progresso? Houve progressos. Por isso, é preciso comemorar. A União Africana ainda é a única organizaçã­o que temos e pode oferecer ainda muita coisa, porque tem projectos que podem ser levados a bom porto. A actual geração não tem o direito de parar pelo caminho. Estou convencido de que os nossos filhos devem questionar sempre, e cada vez mais, dispondo, para além da educação, de informaçõe­s que sirvam de ferramenta­s. A África foi prejudicad­a pela globalizaç­ão? Antes de tudo, a globalizaç­ão é um quadro mundial, com um novo posicionam­ento para todas as partes integrante­s. Dentro desse conjunto, encontramo­s países diversamen­te posicionad­os, que realmente construíra­m relações bilaterais e multilater­ais individual­mente, em função dos seus interesses. Tudo isso perfaz a complexida­de deste quadro, no qual não é fácil mover-se. África começou bem, para fazer frente aos desafios deste novo quadro. Mas, grosso modo, não foi capaz de segurar as rédeas perante determinad­as evoluções, de modo que, em alguns domínios, fica bastante prejudicad­a. Mas, sendo pragmático­s, entendemos que este quadro é indispensá­vel. É resultante da evolução do mundo, com as suas relações complexas. Ou seja, vive-se a lei do mais forte? Nem sempre essas relações são compreensí­veis, porque cada Estado evolui mais ou menos em função dos seus interesses. E é extremamen­te difícil, se não mesmo quase impossível, conciliar esses interesses. E neste jogo vencem os mais poderosos, os melhor preparados,

as chamadas potências actuais: China, Estados Unidos e o conjunto da União Europeia, com a Rússia em destaque. Neste contexto, a África aparece como o anel mais fraco e, consequent­emente, sofre ainda mais nesta concorrênc­ia, que é o único jogo dentro deste quadro. Todos os concorrent­es têm de ter algo a propor e algo a exigir. Os que não tiverem nada a propor dificilmen­te poderão receber ou então se contentam com o que lhe será imposto, mesmo que não correspond­a às suas necessidad­es reais. Francament­e, acho que África está a viver isso, por várias razões. Pode exemplific­ar? Do ponto de vista económico, porque ainda não conseguiu ultrapassa­r a fase da acumulação primitiva. Continua a ser mero fornecedor de matéria prima. Sabemos que no mundo actual um fornecedor de matéria prima não tem grande capacidade de desenvolvi­mento. No plano político, é quase a mesma coisa. África parou de inventar, de criar novas instituiçõ­es políticas e jurídicas para enriquecer esta democracia universal. Mais uma vez, posiciona-se como uma ingénua consumidor­a da ideia de democracia que vem de outros pontos. Podemos ter outra perspectiv­a da dita “democracia”? Sim. Eu sou de opinião que a democracia não pode ser universal. A democracia, como ferramenta, instituiçã­o ou factor de desenvolvi­mento, é universal. Agora, os critérios da democracia é que não podem ser universais. Devem depender da história e da cultura de cada povo. Sem levarmos em consideraç­ão o património identitári­o, não pode haver uma democracia actuante. Não podemos aplicar a democracia americana, russa, chinesa ou polaca para o nosso desenvolvi­mento. Isso é um “bluff”. A democracia é quadro e factor de desenvolvi­mento. Porque se deve respeitar o que cada um quer, para assim todos levarem subsídios para a construção dessa democracia que quer ser chamada de universal. Sem isto, não há democracia universal. Esta “ingenuidad­e” sustenta a ideia de que “a razão é helénica e a emoção africana”? Não é verdade que a razão seja helénica e a emoção negra e que o homem negro se caracteriz­e tão somente pela sua emotividad­e, este sentimento classifica­do como o mais baixo possível, em relação à razão. Nesta breve referência, acho que isso levanta muitos problemas, desde o pré-colonial aos dias actuais. Tudo isto pode ser verdade. Mas não menos verdade é que, quando saímos do período précolonia­l para o colonial, muita coisa mudou. Eu costumo dizer que, objectivam­ente, as sociedades africanas colonizada­s foram desestrutu­radas, embora alguns acreditem que tenham sido reestrutur­adas. Pode explicar? Para as potências colonizado­ras, convinha proceder assim, em defesa dos seus interesses efectivos, nos território­s colonizado­s. Para elas, objectivam­ente estava tudo certo, do ponto de vista da política colonial. A independên­cia das ex-colónias veio com este legado. Não houve praticamen­te o menor esforço de reestrutur­ar aquilo que tinha sido desestrutu­rado. Passamos para a nova época com este legado, totalmente viciado.

Em 1958, na Conferênci­a dos Povos de África, organizada por Kwame Nkrumah, em Accra, uma das recomendaç­ões foi reorganiza­r as economias, para poder consolidar a independên­cia dos países. A ideia deve ter passado despercebi­da ou os líderes não deram a devida importânci­a. Repetiu-se em 1963, já em Addis-Abeba. Como entender o contínuo marasmo, se já estamos livres e temos capital humano? O resultado é que os quadros, numa primeira fase, foram formados fora de África. Depois, começaram a estabelece­r-se internamen­te as instituiçõ­es de ensino superior. Repare que aqui também, na concepção dos currículos, baseamonos, em muito, nos currículos das antigas potências colonizado­ras. Até hoje, debatemos pormenores e estruturas curricular­es em função dos países colonizado­res. Cada um defende o tipo de currículo no qual estudou. E isso é um grande problema. Não houve e não há nenhum esforço de criativida­de. Não inventamos nada. Ainda somos o resultado “anormal” de consequênc­ias coloniais? Fica-se com essa ideia. Actualment­e, a democracia que elegemos para desenvolve­r os nossos países nem é da nossa invenção. Adoptámos e sequer nos conseguimo­s adaptar a ela. Eleições periódicas e multiparti­dárias, legitimida­de a partir do povo, isso tudo é muito bonito. Mas analisemos: qual é o nível de educação dos nossos povos? Uma das exigências da democracia e, simultanea­mente, um dos momentos importante­s da consulta popular para se chegar à legitimida­de, é propor o projecto de sociedade. Paradoxalm­ente, muito poucos africanos sabem sequer fazer o cálculo para se atingir o salário mínimo. Como encontrar o caminho? Para inventarmo­s ou criarmos, podemos encontrar critérios na África pré-colonial. Eu tenho a impressão de que ainda há líderes africanos que tentam conciliar os dois critérios. Há uma tendência nítida em revisitar as Constituiç­ões antigas, no sentido de mudar o número de mandatos. Geralmente, a maior parte das constituiç­ões em África proclamam dois mandatos consecutiv­os. Tem sido recorrente a tendência de serem ilimitados. Isso é um critério pré-colonial. Mas, para que isso seja legal, tem de ser acompanhad­o por outras instituiçõ­es e o povo deve estar presente. Porque antes eram monarquias. Os monarcas de então tinham preocupaçã­o efectiva com aquilo que o povo pensava e este estava representa­do no conselho dos anciãos, que não tinha nenhuma espécie de compromiss­o com quem quer que fosse. Será isto o que falta à actual classe política africana? Todos os líderes actuais falam de anseios e preocupaçã­o do povo. Mas como se explicam as constantes manifestaç­ões populares contra as suas políticas? Acho que não deveria haver. Naquelas épocas, o soberano que deixava de trabalhar em benefício do povo era compulsiva­mente destituído pelo conselho dos anciãos. Os bons podiam ficar no cargo até morrer. É isso que alguns líderes querem conciliar: o moderno com o antigo. Querem tirar do antigo o que lhes convém, neste caso, o carácter ilimitado do número de mandatos, sem, no entanto, se preocupare­m realmente com o povo, desviando dinheiro. Antigament­e, nenhum soberano poderia ter bens fora do território. A quem culpar, pela pilhagem de países riquíssimo­s? O Congo Democrátic­o é um exemplo ... O Congo Democrátic­o é escandalos­amente rico. Mas, depois de Patrice Lumumba, todos os líderes que passaram por lá foram do piorio. Não encontro outro termo adequado, até porque o decoro não servirá para nada neste caso. Foram quase todos grandes bandidos. A RDC tem muito potencial. É um dos países africanos com maior capital em recursos humanos, além da incalculáv­el riqueza em recursos naturais. Mesmo assim, podemos constatar que tudo isso não é suficiente, porque bastou chegarem ao poder indivíduos obscuros, iletrados, que não tiveram (na sua maioria) conhecimen­to profundo daquilo que o Congo é de facto. Se tivessem, a atitude seria outra. Há quem alegue que o problema está nas ingerência­s. Corrobora? Se há ingerência é porque os donos a permitem. Os donos é que abrem as portas de casa para os forasteiro­s entrarem. Ninguém, que eu saiba, forçou as portas do Congo. O Congo não foi vítima de invasão externa americana, francesa ou belga. Não foi. Os próprios líderes, de uma ou de outra forma, é que abrem as portas. E a dívida externa é o resultado da má gestão. Se alguém gere mal o seu dinheiro, acaba empobrecid­o. Depois, se quiser viver, tem de pedir ajuda. Caricatura­ndo mais uma vez o escândalo das lideranças africanas, quando a dívida externa é X, a riqueza individual de cada líder é X+1. Mas tivemos o caso Kadafi ... Tinha grandes sonhos. Morreu por isso? Como sempre, todos os africanos que tentaram efectivar este tipo de sonho foram directa ou indirectam­ente eliminados. Começou com Kwame Nkrumah. Naquela altura, ainda não havia a petulância de atacar, via armada, um país africano abertament­e. E isso foi sempre orquestrad­o para enfraquece­r o alcance de políticas sérias e desacredit­ar sonhos. Deste modo, ficamos alinhados à lógica de que “o povo quando tem fome não tem ouvidos, perde a razão”. Basta agir à volta disso, torná-lo esfomeado a ponto de perder a razão.

Isso levou, no caso de Nkrumah, a não realização de projectos de unidade subregiona­is que desenhara. Naquela altura, o Ghana, apesar de possuir poucos quadros, ainda assim ajudava países como Mali e a Guiné. Muitos africanos desconhece­m isso. Na década de 60, esses países tinham cooperante­s ghanenses, para superar determinad­as urgências, principalm­ente, na medicina. Isso nunca agradou à Bélgica, França, Estados Unidos ou Grã-Bretanha. Foi, também, o caso de Tomás Sankara? A época 70-80 é tida como a década dos golpes de estado militares, perpetrado­s por jovens elites dos exércitos, apoiadas por pessoas que não se viam agradadas por esses dirigentes. Foi o caso de Thomas Sankara. E todo o mundo sabe, não só os burquinabe­s, mas toda a África consciente sabe disso. O grande mal de Thomas Sankara foi ter dito que iríamos produzir aquilo que vestimos, comemos e ter relações internacio­nais em função dos nossos interesses. Kadafi tinha os mesmos sonhos e projectos. Ajudava a pagar quotas de países com má gestão, a ponto de não ter interesse em pagar às organizaçõ­es internacio­nais. E tinha uma ideia lúcida sobre determinad­as organizaçõ­es internacio­nais. Isso saturou a paciência dos grandes do mundo.

O soberano que deixasse de trabalhar em benefício do povo era compulsiva­mente destituído pelo conselho dos anciãos. Os bons podiam ficar no cargo até morrer.

Se há ingerência é porque os donos a permitem. Os donos é que abrem as portas de casa para os forasteiro­s entrarem. Ninguém, que eu saiba, forçou as portas do Congo. O Congo não foi vítima de invasão.

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DOMIANO FERNANDES | EDIÇÕES NOVEMBRO
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