O ópio das instituições
Ele foi um profissional competente, começou a trabalhar desde muito cedo e sendo chefe de Departamento, Director Nacional, Secretário de Estado ou Ministro - atingiu o topo da carreira. Mas, pediu para sair: reconheceu que exercia funções para as quais não estava habilitado, uma vez que, nos últimos anos, o país e o mundo mudaram muito. Entre agarrar-se ao cargo e sair, preferiu sair para reinventar-se: ele não tem medo das vicissitudes da vida.
Por ser uma prática que vem dos primórdios da Independência de Angola, por razões políticas, alguns cidadãos - militantes, independentes e ou da sociedade civil - a pedido de partidos políticos, por amiguismo e ou pela confiança pessoal que neles têm altos dirigentes em posições decisórias, aceitam desempenhar funções e ou assumir responsabilidades que, se fossem ética e intelectualmente honestos, teriam de admitir que não estavam capacitados para as assumirem. Aceitaram e aferraram-se aos cargos, mesmo com um desempenho sofrível.
A equação não é linear: podemos ver bons técnicos com mau desempenho no que à gestão se refere e ou o contrário, gente que sem ser especialista num domínio sob sua alçada, gere muito bem a área que lhe atribuem, valorizando, à margem de razões subjectivas, cada trabalhador e ou especialista de acordo com as suas capacidades, evitando tanto o intriguismo como o favoritismo. Não são estes que chamam a nossa atenção, uma vez que conseguem afrontar com justo mérito os desafios que se lhes apresentam.
Entre 1974 e 1975, o êxodo dos portugueses da antiga colónia à então metrópole e a escassez de quadros formados nos mais diversos sectores da vida social, económica, educativa, técnica e cultural, em Angola, ajudou a permissividade e a posterior explicação de um fenómeno de gestão de recursos humanos prenhe de inconvenientes e de situações caricatas que estrangularam o funcionamento das instituições e, à margem das consequências dos anos de guerra, inibiram o desenvolvimento do nosso país.
Nos últimos dez ou vinte anos, para além da confiança política para exercerem cargos públicos, é notória a profissionalização da gestão dos serviços e intervenção especializada na maioria, se não mesmo em todos os domínios. Mas, ainda assim, persistem resquícios de épocas anteriores que atrapalham o normal funcionamento das instituições, apesar da boa vontade, óptimo nível de expressão oral e impecável apresentação e atavio de muitos desses cidadãos.
A incompetência é o ópio das instituições e é tão lesiva aos interesses colectivos quanto a corrupção: em tempos de mudança como os que vivemos, cada cidadão com determinada responsabilidade pública devia fazer um exame de consciência e avaliar se é mesmo capaz para aquilo que é suposto fazer, de acordo com as especificidades técnicas do ramo em que trabalha e da evolução dos conhecimentos, tendo em conta tanto as expectativas gerais da sociedade como os interesses dos profissionais e instituições da área em que trabalham.
Cada cidadão – simples trabalhador, responsável e ou dirigente - deveria perguntar-se se é (ou não) melhor solicitar que o libertem das funções que desempenham, uma vez que a maquinaria da empresa, da instituição ou do partido e as malhas do amiguismo e ou da confiança não têm, por si só, formas de detectar o embuste: as provas teóricas e práticas, os concursos públicos e a avaliação exaustiva dos currículos são antídotos. Depois de responderem honestamente à pergunta deveriam pedir para sair ou irem estudar, um gesto que, é bom que o saibam, “a pátria e os cidadãos agradeceriam” .
Se ninguém vos disse nada é só porque estão em situação de poder e o que o pacato trabalhador quer é ganhar o seu pão, honradamente. O pior que lhes pode acontecer é caírem nas garras de um chefe incompetente, poderoso e egocêntrico, porque, como ele deve ter sempre razão, estarão forçados a escolher uma destas três opções: colaborarem com ele, ajudando-lhe a fazer prevalecer uma forma atabalhoada de dirigir, humilharem-se e rirem de todas as suas graças para sobreviverem profissionalmente ou, então, fugir dele mudando de trabalho, procurando opções que vos permitam fazer carreira.
O que me admira nele - o que preferiu dimitir-se - é que os seus pares, muitas vezes com um desempenho pior do que o dele, agarram-se aos cargos como bóia de salvação, para humilharem todos, para exigirem que lhes peçamos coisas, para fazerem-nos reféns ou porem-nos a beber das mãos deles. Eles têm medo de naufragar: terminam soçobrando em seco, no deserto de ideias que cultivam com afinco.
Agora, ele que foi competente, às manhãs dá aulas e às tardes fica em casa a ver as borboletas a passarem, a ler, a ouvir música e ou a brincar com o telemóvel, perscrutando as redes sociais. Na primeira oportunidade que tiver, ele optará por fazer uma pós-graduação, no seu dominio: adquirirá novos conhecimentos para lutar contra o ópio das instituições.
*Historiador e Crítico de Arte