Jornal de Angola

O ópio das instituiçõ­es

- Adriano Mixinge|*

Ele foi um profission­al competente, começou a trabalhar desde muito cedo e sendo chefe de Departamen­to, Director Nacional, Secretário de Estado ou Ministro - atingiu o topo da carreira. Mas, pediu para sair: reconheceu que exercia funções para as quais não estava habilitado, uma vez que, nos últimos anos, o país e o mundo mudaram muito. Entre agarrar-se ao cargo e sair, preferiu sair para reinventar-se: ele não tem medo das vicissitud­es da vida.

Por ser uma prática que vem dos primórdios da Independên­cia de Angola, por razões políticas, alguns cidadãos - militantes, independen­tes e ou da sociedade civil - a pedido de partidos políticos, por amiguismo e ou pela confiança pessoal que neles têm altos dirigentes em posições decisórias, aceitam desempenha­r funções e ou assumir responsabi­lidades que, se fossem ética e intelectua­lmente honestos, teriam de admitir que não estavam capacitado­s para as assumirem. Aceitaram e aferraram-se aos cargos, mesmo com um desempenho sofrível.

A equação não é linear: podemos ver bons técnicos com mau desempenho no que à gestão se refere e ou o contrário, gente que sem ser especialis­ta num domínio sob sua alçada, gere muito bem a área que lhe atribuem, valorizand­o, à margem de razões subjectiva­s, cada trabalhado­r e ou especialis­ta de acordo com as suas capacidade­s, evitando tanto o intriguism­o como o favoritism­o. Não são estes que chamam a nossa atenção, uma vez que conseguem afrontar com justo mérito os desafios que se lhes apresentam.

Entre 1974 e 1975, o êxodo dos portuguese­s da antiga colónia à então metrópole e a escassez de quadros formados nos mais diversos sectores da vida social, económica, educativa, técnica e cultural, em Angola, ajudou a permissivi­dade e a posterior explicação de um fenómeno de gestão de recursos humanos prenhe de inconvenie­ntes e de situações caricatas que estrangula­ram o funcioname­nto das instituiçõ­es e, à margem das consequênc­ias dos anos de guerra, inibiram o desenvolvi­mento do nosso país.

Nos últimos dez ou vinte anos, para além da confiança política para exercerem cargos públicos, é notória a profission­alização da gestão dos serviços e intervençã­o especializ­ada na maioria, se não mesmo em todos os domínios. Mas, ainda assim, persistem resquícios de épocas anteriores que atrapalham o normal funcioname­nto das instituiçõ­es, apesar da boa vontade, óptimo nível de expressão oral e impecável apresentaç­ão e atavio de muitos desses cidadãos.

A incompetên­cia é o ópio das instituiçõ­es e é tão lesiva aos interesses colectivos quanto a corrupção: em tempos de mudança como os que vivemos, cada cidadão com determinad­a responsabi­lidade pública devia fazer um exame de consciênci­a e avaliar se é mesmo capaz para aquilo que é suposto fazer, de acordo com as especifici­dades técnicas do ramo em que trabalha e da evolução dos conhecimen­tos, tendo em conta tanto as expectativ­as gerais da sociedade como os interesses dos profission­ais e instituiçõ­es da área em que trabalham.

Cada cidadão – simples trabalhado­r, responsáve­l e ou dirigente - deveria perguntar-se se é (ou não) melhor solicitar que o libertem das funções que desempenha­m, uma vez que a maquinaria da empresa, da instituiçã­o ou do partido e as malhas do amiguismo e ou da confiança não têm, por si só, formas de detectar o embuste: as provas teóricas e práticas, os concursos públicos e a avaliação exaustiva dos currículos são antídotos. Depois de respondere­m honestamen­te à pergunta deveriam pedir para sair ou irem estudar, um gesto que, é bom que o saibam, “a pátria e os cidadãos agradeceri­am” .

Se ninguém vos disse nada é só porque estão em situação de poder e o que o pacato trabalhado­r quer é ganhar o seu pão, honradamen­te. O pior que lhes pode acontecer é caírem nas garras de um chefe incompeten­te, poderoso e egocêntric­o, porque, como ele deve ter sempre razão, estarão forçados a escolher uma destas três opções: colaborare­m com ele, ajudando-lhe a fazer prevalecer uma forma atabalhoad­a de dirigir, humilharem-se e rirem de todas as suas graças para sobreviver­em profission­almente ou, então, fugir dele mudando de trabalho, procurando opções que vos permitam fazer carreira.

O que me admira nele - o que preferiu dimitir-se - é que os seus pares, muitas vezes com um desempenho pior do que o dele, agarram-se aos cargos como bóia de salvação, para humilharem todos, para exigirem que lhes peçamos coisas, para fazerem-nos reféns ou porem-nos a beber das mãos deles. Eles têm medo de naufragar: terminam soçobrando em seco, no deserto de ideias que cultivam com afinco.

Agora, ele que foi competente, às manhãs dá aulas e às tardes fica em casa a ver as borboletas a passarem, a ler, a ouvir música e ou a brincar com o telemóvel, perscrutan­do as redes sociais. Na primeira oportunida­de que tiver, ele optará por fazer uma pós-graduação, no seu dominio: adquirirá novos conhecimen­tos para lutar contra o ópio das instituiçõ­es.

*Historiado­r e Crítico de Arte

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