Jornal de Angola

Sobre vida

- Manuel Rui

A última metade do séc. XX e o início deste, foram marcados por alterações do pensamento no que se refere à filosofia e ciências da vida. Quem poderia pensar que a Irlanda, predominan­temente católica, havia de ser, faz três anos, o primeiro país do mundo a legalizar por referendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ter um primeiro -ministro gay, e por mais outro referendo recente votar sim para o aborto, quando antes, era severament­e penalizado com prisão até 14 anos.

Trata-se de uma verdadeira rotura com a história, que não obedeceu a uma demorada destilação de pensamento e debate. Isto, acontece em contradiçã­o com o pensamento oficial do Vaticano. Aliás, uma das curiosidad­es sociológic­as das religiões é que muitos dos seus praticante­s não cumprem os dogmas impostos, pelos mesmos serem adoptados pela fé sem quaisquer sanções terrestres. As irlandesas católicas iam fazer abortos fora da Irlanda, para se furtarem aos eventuais castigos penais e dando de barato a proibição religiosa. Aqui, pode-se comparar com os clérigos católicos que incumprem quando violam regras sexuais da Igreja, mas só temem, realmente, as sanções penais.

E, vem-me isto à propósito, pelo facto de quando estudava direito em Coimbra, Portugal, um livreiro amigo, o saudoso Machado da Livraria Almedina, candongou -me um livro em espanhol sobre o suicídio, o aborto e a eutanásia, sendo que este último fenómeno era para mim novidade. O livro era proibido em Portugal e era pelo Machado que nós conhecíamo­s o mundo a que o salazarism­o se fechava.

A penalizaçã­o do aborto, era não faz muito tempo, um recusa ao direito da mulher decidir sobre o seu próprio ventre, enquanto o feto, cientifica­mente, não fosse considerad­o um ser vivo, uma pessoa. Na história dos sofrimento­s da mulher, devem contar-se por milhões as que sofreram por causa do aborto.

Também os casamentos, entre pessoas do mesmo sexo, foi uma reviravolt­a que mexeu com os princípios em que se fundamenta­vam, conceitual­mente, um dos pilares da sociedade: a família, com pai, mãe e filhos. Mais problemáti­co se tornou o tema, quando a ele se juntou o direito desses casais poderem adoptar crianças como suas filhas. Outra vez, se entrava em conflito com a Igreja, sendo verdade que padres já presidiram ao cerimonial de casamentos gay.

A questão fundamenta­l, é o da vida e seus contornos mais íntimos, como a sexualidad­e. Também saber dos direitos que cada um tem sobre a sua vida. E, surge a questão do suicídio. Se o ser humano, adulto, tem o direito de acabar com a sua própria vida. Nos limites de uma crónica, que não é um estudo científico, pode-se dizer que não é tanto o problema do direito a uma pessoa pôr fim à vida, mas os deveres desse homem para com a sociedade e desta, em defender a sua vida.

A situação limite entre a vida e seu fim é a eutanásia. A pessoa com doença incurável e de crescente sofrimento, pede para que o “matem.” Há quem utilize a expressão do direito, a morrer com dignidade, desistindo-se dos cuidados paliativos que lhe vão amenizando o sofrimento, ficando o paciente “ligado aos tubos” até que, naturalmen­te morra, pois, pode-se perguntar se a eutanásia não é uma morte artificial. Opositores à eutanásia comparam à injecção letal, como a que se dá na execução de uma pena de morte, sendo aqui, o sofrimento, o tempo de espera até à execução, e a literatura é vasta e escrita por quem veio a ser executado como o americano Chessman.

A eutanásia deve merecer uma outra atenção, do ponto de vista do desenvolvi­mento de cada país, e sua cultura sobre a vida. É preciso, que no país onde se pratique, a medicina esteja avançada para não se autorizar indiscrimi­nadamente a morte assistida, evitando-se verdadeiro­s homicídios por interesses hereditári­os, por exemplo, ou outros, como os familiares se libertarem do familiar paciente que já não tem consciênci­a, está morto cerebralme­nte e vai matando os vivos que dele cuidam. Portanto, há a evolução das ciências médicas, com todos os recursos possíveis, há a postura dos familiares, o laudo dos médicos e a vontade ponderada e livre da pessoa que aceita a morte assistida.

Também, aqui, a religião católica se opõe com sua visão dogmática, com princípios imutáveis, mas que aqui e além vai cedendo, como a exigência de véus e outros requisitos do vestuário para se entrar num templo.

Bem vistas as coisas, para nós, a eutanásia está muito longe do paludismo e o mosquito que merece respeito pelas doenças que transmite, um flagelo que vitima países como o Brasil, não merece morte assistida... e eu, pergunto ao meu cágado vestido de palavras do silêncio, se o culpado de todos os problemas, desta vez não é o ódio, mas o amor… e se o transplant­e de um coração traz consigo os amores e desamores que esse coração viveu quando era do falecido…

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