Sobre vida
A última metade do séc. XX e o início deste, foram marcados por alterações do pensamento no que se refere à filosofia e ciências da vida. Quem poderia pensar que a Irlanda, predominantemente católica, havia de ser, faz três anos, o primeiro país do mundo a legalizar por referendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ter um primeiro -ministro gay, e por mais outro referendo recente votar sim para o aborto, quando antes, era severamente penalizado com prisão até 14 anos.
Trata-se de uma verdadeira rotura com a história, que não obedeceu a uma demorada destilação de pensamento e debate. Isto, acontece em contradição com o pensamento oficial do Vaticano. Aliás, uma das curiosidades sociológicas das religiões é que muitos dos seus praticantes não cumprem os dogmas impostos, pelos mesmos serem adoptados pela fé sem quaisquer sanções terrestres. As irlandesas católicas iam fazer abortos fora da Irlanda, para se furtarem aos eventuais castigos penais e dando de barato a proibição religiosa. Aqui, pode-se comparar com os clérigos católicos que incumprem quando violam regras sexuais da Igreja, mas só temem, realmente, as sanções penais.
E, vem-me isto à propósito, pelo facto de quando estudava direito em Coimbra, Portugal, um livreiro amigo, o saudoso Machado da Livraria Almedina, candongou -me um livro em espanhol sobre o suicídio, o aborto e a eutanásia, sendo que este último fenómeno era para mim novidade. O livro era proibido em Portugal e era pelo Machado que nós conhecíamos o mundo a que o salazarismo se fechava.
A penalização do aborto, era não faz muito tempo, um recusa ao direito da mulher decidir sobre o seu próprio ventre, enquanto o feto, cientificamente, não fosse considerado um ser vivo, uma pessoa. Na história dos sofrimentos da mulher, devem contar-se por milhões as que sofreram por causa do aborto.
Também os casamentos, entre pessoas do mesmo sexo, foi uma reviravolta que mexeu com os princípios em que se fundamentavam, conceitualmente, um dos pilares da sociedade: a família, com pai, mãe e filhos. Mais problemático se tornou o tema, quando a ele se juntou o direito desses casais poderem adoptar crianças como suas filhas. Outra vez, se entrava em conflito com a Igreja, sendo verdade que padres já presidiram ao cerimonial de casamentos gay.
A questão fundamental, é o da vida e seus contornos mais íntimos, como a sexualidade. Também saber dos direitos que cada um tem sobre a sua vida. E, surge a questão do suicídio. Se o ser humano, adulto, tem o direito de acabar com a sua própria vida. Nos limites de uma crónica, que não é um estudo científico, pode-se dizer que não é tanto o problema do direito a uma pessoa pôr fim à vida, mas os deveres desse homem para com a sociedade e desta, em defender a sua vida.
A situação limite entre a vida e seu fim é a eutanásia. A pessoa com doença incurável e de crescente sofrimento, pede para que o “matem.” Há quem utilize a expressão do direito, a morrer com dignidade, desistindo-se dos cuidados paliativos que lhe vão amenizando o sofrimento, ficando o paciente “ligado aos tubos” até que, naturalmente morra, pois, pode-se perguntar se a eutanásia não é uma morte artificial. Opositores à eutanásia comparam à injecção letal, como a que se dá na execução de uma pena de morte, sendo aqui, o sofrimento, o tempo de espera até à execução, e a literatura é vasta e escrita por quem veio a ser executado como o americano Chessman.
A eutanásia deve merecer uma outra atenção, do ponto de vista do desenvolvimento de cada país, e sua cultura sobre a vida. É preciso, que no país onde se pratique, a medicina esteja avançada para não se autorizar indiscriminadamente a morte assistida, evitando-se verdadeiros homicídios por interesses hereditários, por exemplo, ou outros, como os familiares se libertarem do familiar paciente que já não tem consciência, está morto cerebralmente e vai matando os vivos que dele cuidam. Portanto, há a evolução das ciências médicas, com todos os recursos possíveis, há a postura dos familiares, o laudo dos médicos e a vontade ponderada e livre da pessoa que aceita a morte assistida.
Também, aqui, a religião católica se opõe com sua visão dogmática, com princípios imutáveis, mas que aqui e além vai cedendo, como a exigência de véus e outros requisitos do vestuário para se entrar num templo.
Bem vistas as coisas, para nós, a eutanásia está muito longe do paludismo e o mosquito que merece respeito pelas doenças que transmite, um flagelo que vitima países como o Brasil, não merece morte assistida... e eu, pergunto ao meu cágado vestido de palavras do silêncio, se o culpado de todos os problemas, desta vez não é o ódio, mas o amor… e se o transplante de um coração traz consigo os amores e desamores que esse coração viveu quando era do falecido…