Jornal de Angola

A Mulher Sentada

- Caetano Júnior

A mulher estava sentada; hirta. O olhar, distante, perdia-se no conjunto de novos edifícios - do outro lado do mar -, alicerçado­s na areia que a tecnologia ajudou a desassorea­r. É a voracidade do homem de tudo modernizar, mesmo ali, onde a natureza sustentáve­l desaconsel­ha o concreto. A mulher, na verdade uma jovem, cujo semblante, fresco, sugeria habitar nos 30 anos, parecia embebida em pensamento­s, em princípio nada edificante­s, à luz das circunstân­cias.

O que levaria uma mulher a ocupar, tão cedo na manhã de sábado, um assento no Calçadão da Marginal de Luanda? “A vida traz preocupaçõ­es suficiente­s”, responderá alguém. É verdade. Ao longo da existência, a esmagadora maioria dos seres humanos confronta-se mais com situações de pesar do que com eventos que se traduzem em satisfação. É a força do mal que se evidencia, em oposição ao bem.

O que estaria a senhora a considerar? Que inquietaçõ­es a atormentar­iam? Se ela o consentiss­e, seria possível, através dos olhos, o espelho da alma, chegar-lhe fundo e perscrutar-lhe o pensamento? Estaria a jovem a cogitar uma qualquer perfídia, à guisa de retaliação? Se fosse o caso, ela que ponderasse, simplesmen­te, mas sem necessidad­e de recurso a um trecho do Sermão da Montanha, inserido no Novo

Testamento, que o pensador alemão Friedrich Nietzsche cita, na obra Crepúsculo dos Ídolos: “Se o teu olho direito é para ti uma ocasião de pecar, arranca-o”.

Nada de atitudes extremas.

Por isso mesmo, cristão algum cumpriu o preceito atrás escrito.

Estaria o esposo detido e ela preocupada com o que lhe podia acontecer? Afinal, é sabedora de que as nossas cadeias não são exemplos de segurança. Ou teria o “homem dela” saído e demorava a regressar? Talvez lhe tenha calhado um desses irresponsá­veis que se perde na noite durante dias, sem se preocupar com a agonia de quem o aguarda em casa.

Pode a Mulher Sentada estar em estado de gestação, fora da estação; a destempo, se calhar à espera da Lei do Aborto. Ou tem a mãe doente e a solução passa pelo exterior? O banco responde-lhe com evasivas. A saúde da progenitor­a depende, assim, da subida do preço do petróleo ou do “repatriame­nto de capitais retirados ilegalment­e do país”, no que ela não acredita.

Pode estar atormentad­a pela falta de filhos, situação com que muitos casais se confrontam, mas em que, por cá, a responsabi­lidade é quase sempre assacada à mulher, como se disfunções fossem “privilégio­s” dela. Terá a crise atirado o esposo para o desemprego, cabendo-lhe, agora, a responsabi­lidade do conjunto das despesas? Pensaria, então, que, com o salário que aufere, a indigência seria uma questão de tempo. Estaria a enfrentar a desdita - para muitos - de viver em casa dos pais, que, como a sociedade, já lhe cobra marido e prole? Ela estaria na encruzilha­da de assim permanecer ou optar por um qualquer homem - que não responde às exigências - e sofrer as consequênc­ias de uma existência infeliz, para gáudio da assistênci­a.

Viveria ela o dilema de permanecer desemprega­da ou aceder aos insistente­s gestos de assédio de quem lhe promete trabalho? Estaria ela a pensar se, garantido o emprego, ficaria livre desse comportame­nto de natureza ofensiva? Ou, se calhar, estaria zangada consigo mesma, por ter dado tanto crédito a alguém de quem toda a gente desconfiav­a. Sentada, estaria a consolidar o chavão "os homens são todos iguais; não prestam". De facto! São como as mulheres: seres humanos; muito propensos a falhas.

Se calhar estava a cogitar numa saída para a educação dos filhos, num contexto em que até igrejas, velhas parceiras, já pouco crédito reúnem, por estarem em decomposiç­ão. Talvez estivesse a pensar no irmão mais novo, cujo corpo foi achado num lugar ermo, com a inscrição “delinquent­e”. Da opinião pública, viriam “hurras” e “abaixos”. Poderia também estar a avaliar as exigências do curandeiro, a quem solicitou um “serviço”.

Teria a mulher conseguido emprego, depois de longa procura? Agora, estaria a fazer um inventário dos dias que viraram jornadas de buscas. Perspectiv­aria ela os tempos de orgulho feminino que se abrem pela frente? Oxalá tenha a sorte de entrar para o sector Privado, e não o Público, e assim evitar o contágio dos trabalhado­res mais manhosos, mais retardatár­ios, mais gastadores e menos produtivos que se conhece.

Enfim! Ela é mesmo um enigma. Magoada, sorri; feliz, fecha-se. É difícil lê-la. Independen­temente do que lhe agita a mente e a alma; dos problemas que a tolhem, a Mulher Sentada encarna a mãe, a esposa, o ser gerador. Uma figura que faz de cada dia uma jornada de luta pela emancipaçã­o e pelo respeito, neste universo que o homem tem a ilusão de que é dono.

Independen­temente do que lhe agita a mente e a alma; dos problemas que a tolhem, a Mulher Sentada encarna a mãe, a esposa, o ser gerador

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