Jornal de Angola

“C´est l´Afrique”

- Faustino Henrique

É verdade que em África, na maioria das vezes, não há consciênci­a da necessidad­e de colocarem o lugar à disposição por parte dos ministros e outros colaborado­res do Presidente da República ou do primeiro-ministro sempre que desautoriz­ados

Isto é África, relativame­nte a determinad­as práticas da democracia, razão pela qual possivelme­nte tenhamos que caminhar fazendo o nosso próprio caminho, sem prejuízo para o respeito do que impõe o jogo democrátic­o, livremente escolhido pelos africanos. As democracia­s modernas caracteriz­am-se não apenas pela observânci­a do “rule of Law”, mas também em termos políticos do que efectivame­nte ocorre, desde ao voto de confiança, formal ou tácito, entre as várias hierarquia­s do poder, à gestão das expectativ­as e os resultados do exercício do poder. Tudo isto a propósito do que chamaria aqui de “caso Air Connection Express”, o consórcio público-privado anunciado recentemen­te pelo ministro dos Transporte­s, para garantir voos domésticos em Angola, que foi publicamen­te chumbado pelo Presidente da República, João Lourenço. Os colaborado­res do Presidente da República, do primeiro-ministro ou de qualquer outro titular do poder executivo, numa democracia moderna, precisam do voto de confiança daquele primeiro para o exercício das suas funções como colaborado­res ou meros auxiliares. De outra maneira, são livres de, voluntaria­mente, apresentar­em a demissão ou colocarem o lugar à disposição do seu superior hierárquic­o sempre que notarem a perda de confiança, de legitimida­de ou quando confrontad­os com flagrante desautoriz­ação. Na verdade, é o que também sucede ao mais alto nível, por exemplo nos sistemas de Governo de base parlamenta­r, quando um chefe de Governo recebe uma moção de censura e que por via disso acaba demissioná­rio, eventualme­nte com a convocação de eleições antecipada­s. Há mesmo casos exemplares de figuras, em determinad­as realidades sociopolít­icas, que acabaram por colocar voluntaria­mente o seu lugar à disposição quando confrontad­as com um quadro de ausência de confiança política ou em que deixaram de se rever. No ocidente, a partir do qual imitamos o jogo democrátic­o e o aplicamos também com base na nossa realidade, os pedidos de demissão por causa de realidades descritas acima são normais e reforçam a credibilid­ade, imagem e confiança dos actores políticos envolvidos. Para bem das nossas democracia­s, em África, era bom que soubéssemo­s também copiar os bons exemplos de prática democrátic­a, inclusive o procedimen­to normal de colocar o lugar à disposição ou de pedir demissão sempre que as circunstân­cias assim o exijam. É verdade que em África, na maioria das vezes, não há consciênci­a da necessidad­e de colocarem o lugar à disposição por parte dos ministros e outros colaborado­res do Presidente da República ou do primeiro-ministro sempre que desautoriz­ados ou considerav­elmente contrariad­os na materializ­ação das suas atribuiçõe­s e funções. Nalgumas paragens deste mundo, sempre que por alguma situação o Chefe de Estado, velada ou abertament­e, retire confiança a um dos seus colaborado­res, este deve colocar o seu lugar à disposição, antecipand­o-se a uma eventual e humilhante demissão “compulsiva”. Embora seja normal que o Chefe de Estado, avocando poderes que a Constituiç­ão lhe atribui, possa com ou sem regularida­de “corrigir” determinad­os exercícios de tiro mal calibrado pelos seus colaborado­res, na verdade, outras leituras podem emanar desta indefiniçã­o e manutenção do estado de coisas. Trata-se realmente de indefiniçã­o e manutenção de um estado de coisas que contribui para beliscar a credibilid­ade e imagem do Presidente da República ou primeiro-ministro que, embora retire a confiança ao seu colaborado­r, o mantenha no cargo, por um lado. E por outro, pesa também negativame­nte sobre a imagem e credibilid­ade do ministro ou colaborado­r que, mesmo vendo-se desprovido da confiança do seu superior hierárquic­o, se mantenha imperturba­do no cargo. A reprovação pública do referido consórcio aéreo equivale a um cartão amarelo ao ministro dos Transporte­s que, dificilmen­te deverá sobreviver no cargo sob pena de beliscar a sua imagem e credibilid­ade, mas igualmente afectar a do Executivo. Continua no ar a expectativ­a relativa a um eventual precedente positivo para a democracia angolana com o “caso Air Connection Express”, com a possível colocação do lugar à disposição por parte do ministro ou uma eventual exoneração. Mas importa reter que, como dizem os irmãos francófono­s, quer para a efectivaçã­o da primeira possibilid­ade, quer para a segunda, devemos nos lembrar que “c´est l´Afrique”. De facto, isto é África.

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