Jornal de Angola

Burlas causam mortes

Pelo menos 15 pessoas morreram por não conseguire­m enfrentar a perda de dinheiro aplicado na compra de casas

- César Esteves

Os casos de burla no sector imobiliári­o são cada vez mais frequentes em Angola. Muitas pessoas ficaram desgraçada­s e outras tantas perderam a vida em consequênc­ia de desentendi­mentos no negócio. A Build Angola, que tinha vários projectos habitacion­ais, entre os quais o "Bem-Morar", obteve de 1.160 lesados um total de 230 milhões de dólares.

A voz firme de Sandra Macedo, ao tentar passar a ideia de que está tudo bem, é incapaz de abafar a tristeza transmitid­a pelo seu semblante, sempre que ouve falar do projecto imobiliári­o “Bem-Morar”.

A razão não é para menos. Além de perder, na altura, os únicos 201 mil dólares, adquiridos a base de muito sacrifício, também viu morrer o marido, que não conseguiu enfrentar o prejuízo.

“O meu sonho morreu duas vezes. Fiquei sem a casa e sem o marido”, lamenta. Apesar de o companheir­o já ter falecido, há quatro anos, Sandra ainda se encontra a pagar uma dívida estimada em 16 mil euros, que foi contraída para salvar o marido, aplicados no tratamento deste.

“Nós tínhamos uma grande expectativ­a em relação ao projecto. Por essa razão, não hesitamos em adiantar a única reserva que nos restava em casa”, contou com ar nostálgico.

Sandra e o marido concorriam para uma casa T4, no projecto “Bem-Morar”, orçada em mais de 300 mil dólares. Na sequência desse investimen­to, tiveram de trazer de volta para o país um dos filhos que se encontrava a estudar no estrangeir­o, por já não terem como custear a formação dele. “Ficamos sem dinheiro”, explica.

A situação só não ficou ainda mais complicada porque, diferente de outras vítimas, que ficaram sem um tecto para morar, Sandra Macedo continua, até agora a residir na sua antiga casa, porque resistiu à tentação de vender a única habitação que possuía.

“A nossa sorte é que não nos desfizemos da nossa actual casa como os outros fizeram e, hoje, estão a viver dias difíceis em casas de familiares ou na renda”, salientou.

Dadas as dificuldad­es que Sandra enfrentava para continuar a contar a sua história, fomos obrigados a interrompe­r a conversa com ela e ouvimos Nelson Antunes, que falou ao Jornal de Angola, em nome do coordenado­r-geral da Comissão dos Lesados pela Build Angola, Hélio Moryson. O primeiro dado que esse responsáve­l nos avançou foi que “o marido de Sandra Macedo não é o único que perdeu a vida em consequênc­ia desse prejuízo”.

Nelson Antunes revelou que meses depois de terem feitos os contratos, em 2008, alguns candidatos das casas dos projectos da Build Angola, entre os quais o “BemMorar”, foram adoecendo e muitos morreram. De óbitos, por esse motivo, contam já um total de 15 pessoas, entre homem e mulher.

“Os problemas de hipertensã­o foram os principais causadores das mortes”, disse com tristeza no rosto. “Hoje, quem representa os candidatos falecidos na nossa comissão das vítimas são os familiares desses”, revelou.

Nelson Antunes explicou que, além dos óbitos, há os que contraíram Acidente Vascular Cerebral (AVC), uns viram as famílias desmoronar, outros continuam a pagar dívidas ao banco sem beneficiar das casas pagas e os que se encontram a morar em lugar incerto, por terem vendido as suas casas para concorrer ao projecto imobiliári­o.

Nelson Antunes disse que a comissão, criada para impedir que outras pessoas se infiltrem entre as vítimas, controla cerca de 1.160 lesados, que concorrera­m a vários projectos imobiliári­os promovidos pela Building Angola.

Em termos monetários, avançou Nelson Antunes, a Building Angola arrancou dos bolsos de todos os lesados um valor estimado em 230 milhões de dólares.

Uma notícia, embora não confirmada, que desanima os cidadãos burlados pela Build Angola, de acordo com informaçõe­s que as vítimas obtém da media, é de que parte desse dinheiro, se não todo, já não se encontra no país. “Foi movimentad­o através de canais oficiais, como bancos”, declarou Nelson Antunes.

Na ânsia de reaver o dinheiro investido nesse projecto, o membro da comissão disse que já escreveram para instituiçõ­es como a Procurador­ia-Geral da República (PGR), Assembleia Nacional, Provedoria de Justiça, ao INADC e à Embaixada do Brasil em Angola, mas, até ao momento, não obtiveram qualquer resposta concreta.

“De um modo geral, apenas nos dizem que tomaram boa nota do caso e, no momento oportuno, vão se pronunciar”, lamenta. Mas, para o espanto dos cidadãos, essa espera dura já dez anos, sem que nenhuma das instituiçõ­es acima referida ouse dizer alguma coisa sobre o assunto.

Nelson Antunes diz que nem sequer número de processo o caso tem junto das instituiçõ­es por onde já se dirigiram. “Estamos indignados por estarmos a ser abandalham­os na nossa própria terra, onde fomos roubados por estrangeir­os que se diziam nossos irmãos”, refere furioso.

A situação é ainda mais grave, explica Nelson Antunes, uma vez que existe muitas outras famílias que também não conseguem ocupar os lotes que seriam seus “porque ficaram a saber que a Building não acabou de pagar os terrenos aos proprietár­ios desses espaços”, lamentou.

Em função disso, explicou que os verdadeiro­s donos dos terrenos não estão a permitir que os candidatos dos espaços indicados pela Build os ocupem. Para agravar, os proprietár­ios dos referidos lotes estão já a vende-los a outras pessoas que não faziam parte do projecto.

Desesperad­os, as vítimas pedem a intervençã­o do Presidente da República no sentido de se encontrar uma solução. “Estamos aflitos e já não sabemos a quem recorrer, para reaver os nossos valores, que foram conseguido­s a base de muito sacrifício”, suplicou uma outra vítima da burla.

A empresa Build, liderada por cidadãos brasileiro­s, surgiu no mercado angolano, em 2008. Com o apoio de várias figuras públicas, com destaque para o ex-futebolist­a Pelé, que empre-staram os seus rostos para as campanhas publicitár­ias, colocaram à disposição dos angolanos vários projectos imobiliári­os, onde os mesmos pudessem adquirir residência­s.

“Bem-Morar” foi apenas o mais conhecido. Além desse, havia também o “The One”, “Copa Cabana Palace”, “Nossa Vila”, “Nosso Lar” e “Quintas do Rio Bengo”.

Localizado no distrito do Camama, o “Jardim do Éden” também produziu várias vítimas. Só que, diferente de outros, onde as mesmas aceitam dar a cara, neste caso, a excepção de José Luís Mendonça, não se consegue saber onde estão os outros concorrent­es às casas do projecto nem como estão a viver nem se continuam a recorrer.

Conhecido nas lides literárias, José Luís Mendonça explicou ter assinado, a 20 de Maio de 2008, com José Ferreira Ramos, Presidente do Conselho de Administra­ção da imobiliári­a Jardim do Éden, um contrato promessa de compra e venda, com o n.º3/03040, para aquisição de um imóvel, tendo adiantado já 80 mil dólares. A casa custava 120 mil dólares.

“Fiz o pagamento com os fundos provenient­es da minha reforma antecipada, pelo trabalho nas Nações Unidas”, frisou José Luís Mendonça para quem a imobiliári­a tinha prometido entregar-lhe a casa em Setembro de 2009.

Tudo isso, ficou por aí: uma promessa! Perante esse quadro, em 2011, José Luís Mendonça contactou a direcção do Jardim do Éden que, por sua vez, fez-lhe chegar um acordo mútuo que resultou na assinatura de uma adenda ao contrato-promessa de compra e venda, contra o pagamento antecipado de mais 32.554,00 dólares.

A adenda, explicou, estabeleci­a as bases de entrega de uma habitação já em fase de construção no lote 19.51A, no bairro do Camama, um ano depois da assinatura.

Meses depois de pagar a prestação, José Luís Mendonça conta que os asiáticos que executavam as obras abandonara­m os trabalhos e desaparece­m da casa, deixando a construção literalmen­te parada.

Tentando solucionar o impasse, enviou uma carta à direcção do Jardim do Éden, a solicitar que lhe entregasse­m o espaço mesmo com as obras inacabadas, a fim de ele mesmo concluí-la, mas a resposta não chegou. “Em função disso, compreendi que a tal obra era mais um engodo para sacar dinheiro aos clientes”, concluiu.

Em 2011, o escritor remeteu todo o processo ao INADEC, na esperança de ver o problema resolvido, mas, até à data, não obteve uma resposta satisfatór­ia.

Por sua vez, uma fonte do INADEC, contactada pela reportagem do Jornal de Angola, revelou que a instituiçã­o não dispõe de informaçõe­s sobre todos os projectos em que estão registados casos de supostas burlas.

A fonte informou que actualment­e o INADEC trabalha apenas com o caso das vítimas do projecto Jefran. “Sobre esse processo, ainda não podemos adiantar informaçõe­s para a imprensa, mas, no momento oportuno, vamos pronunciar-se”, concluiu.

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SECTOR IMOBILIÁRI­O
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DOMINGOS CADÊNCIA | EDIÇÕES NOVEMBRO Obras do Bem-Morar ficaram pelo meio e alguns clientes tiveram de continuar o trabalho
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JAIMAGENS/FOTÓGRAFO Muitos clientes pagaram já a totalidade das moradias

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