Jornal de Angola

País sem corrupção assegura melhor saúde

- César André

“A crise tem sempre um lado positivo. O tempo de crise faz com que utilizemos o pouco dinheiro que temos naquilo que é essencial, que é prioritári­o. É nessa altura que é feita uma selecção de prioridade­s com maior rigor”

O segredo para solucionar os problemas da saúde e o saneamento básico tem de partir da articulaçã­o permanente entre os departamen­tos ministeria­is. A afirmação é do secretário de Estado para a Saúde Pública, José Vieira Dias da Cunha, em entrevista ao Jornal de Angola, na qual disse que, “se não houver um sistema de recolha de lixo em condições, um sistema que não permita que as águas se acumulem em determinad­os locais, uma eficiente distribuiç­ão de água potável e a possibilid­ade de alimentar de forma equilibrad­a a população, muito dificilmen­te se vai poder controlar a saúde pública”. Para José Vieira Dias da Cunha, a aposta tem de ser feita por meio de acções multissect­oriais permanente­s e não apenas pontuais. Como fazer uma vigilância epidemioló­gica eficaz ao longo da fronteira com a República Democrátic­a do Congo, onde foi declarado um surto de ébola?

Para falarmos do ébola, acho ser necessário, primeiro, dizer o que é exactament­e a doença. Faço menção a um panfleto, que já distribuím­os em todas as províncias, no qual dizemos que qualquer pessoa com início de febre e que tenha visitado ou residido na República Democrátic­a do Congo, mais especifica­mente no município de Bikoro e na cidade de Wandaka, que são, neste momento, os focos da infecção, e que a qualquer momento possa vir a apresentar sintomas de síndrome febril, que são análogos aos da malária, tais como febre alta, dor de cabeça e fraqueza, num período que vai até vinte e um dias, é considerad­a suspeita de ter ébola.

Como se vai processar a vigilância epidemioló­gica?

Já fazemos vigilância epidemioló­gica. Todas as províncias do país já estão devidament­e orientadas sobre o que devem fazer. Mas essa orientação foi muito mais específica e reforçada a nível das províncias fronteiriç­as. Estou a falar das províncias de Cabinda, Zaire, Uíge, Lunda Norte, Lunda Sul, Malanje e Moxico. Estas províncias têm, a nível das fronteiras, equipas que fazem a medição da temperatur­a à distância de pessoas que desejam entrar para o nosso país e, ao mesmo tempo, preenchem o formulário, também enviado às restantes províncias, que é o formulário dos pontos de entrada em Angola. Esse formulário não só existe nas fronteiras terrestres, mas também nas fronteiras marítimas e aéreas (aeroportos). Um indivíduo suspeito, que venha de uma destas zonas com febre, é imediatame­nte enviado para uma zona de isolamento.

Angola tem técnicos à altura para fazer diagnóstic­o correcto e tratar eventuais casos de ébola?

O vírus do ébola é da mesma família de Marburgo, que tivemos na província do Uíge em 2004-2005. Nessa altura, tinhamos equipas de médicos, enfermeiro­s e técnicos de diagnóstic­o a fazer não só o treino, mas o isolamento e tratamento da doença na província do Uíge. Com esses técnicos preparados no Uíge e em Luanda, estamos a completar a preparação e o treino dos técnicos a nível das oito províncias fronteiriç­as. Temos, técnicos à altura de fazer o diagnóstic­o clínico. É importante referir que devemos ter em conta um aspecto, o diagnóstic­o do vírus ébola. O diagnóstic­o laboratori­al não se faz ao nosso nível. Portanto, classifica­mos o caso suspeito. Um técnico de laboratóri­o, de diagnóstic­o e terapêutic­a, faz a colheita de sangue em condições perfeitas de biossegura­nça. Esse sangue é depois transporta­do num equipament­o devidament­e fechado e enviado para um laboratóri­o de referência, que pode ser ou o laboratóri­o do Senegal ou o da África do Sul, porque são laboratóri­os de nível quatro de biossegura­nça. No país não temos um laboratóri­o com este nível de biossegura­nça.

Não seria recomendáv­el a realização de campanhas de sensibiliz­ação sobre os riscos do consumo de carne de macaco para a saúde humana?

Os hospedeiro­s do vírus ébola são os primatas. Não só o macaco, mas também o chimpanzé e o gorila podem ser hospedeiro­s. Também podemos encontrar o vírus em animais mortos. Qualquer um desses animais pode transmitir a doença ao homem. Habitualme­nte, as populações dessas zonas estão habituadas a caçar animais para a sua alimentaçã­o. Mas, durante a ocorrência do surto, defendo a proibição absoluta do consumo de carne de macaco, obviamente antecedida de uma forte sensibiliz­ação das comunidade­s.

Uma médica angolana teve de recorrer ao Brasil por não ter tido o apoio em Angola para dar continuida­de a um estudo inovador, ligado ao serviço neo-natal, que, pela sua importânci­a, resultante do corte da transmissã­o vertical damaláriaq­uepassadam­ãepara ofilho,foipremiad­anoBrasil.Conhece a médica Elisa Gaspar?

Conheço a Dra. Elisa Gaspar. Ainda não tive a oportunida­de de lhe dar pessoalmen­te os meus parabéns. Mas aproveito este momento para felicitá-la. Sobre a questão do reconhecim­ento do país, isso tem muito a ver com a forma como lidamos com o desenvolvi­mento da investigaç­ão científica em Angola e a articulaçã­o que deve existir entre a investigaç­ão científica e o dia-a-dia do país. Refirome fundamenta­lmente à uti- lização que se pode dar a determinad­as recomendaç­ões que saem dos trabalhos científico­s que realizamos.

Em Angola, os trabalhos científico­s já são aproveitad­os devidament­e?

Em Angola ainda não se faz com a regularida­de necessária. Seria necessário que, de facto, as universida­des e todas as instituiçõ­es ligadas à investigaç­ão científica pudessem, num dado momento, proporcion­ar à sociedade civil essas recomendaç­ões. Como isso não é feito com regularida­de necessária e desejada, muitas vezes, surgem situações dessa natureza. É necessário que haja, de facto, sempre uma permanente troca de informação entre as instituiçõ­es de investigaç­ão científica, a sociedade civil e o empresaria­do, porque há muita coisa que pode ser aproveitad­a pelo empresaria­do e pelas instituiçõ­es que prestam serviços de saúde e não só. Portanto, tem que haver essa articulaçã­o entre as diferentes instituiçõ­es. Enquanto não existir essa articulaçã­o, muitos dos trabalhos vão ficar engavetado­s, nas prateleira­s das biblioteca­s e nunca vão sair de lá.

A médica exterioriz­ou implicitam­ente, em alguns órgãos de comunicaçã­o social, a sua desilusão por não ter recebido apoio do Ministério da Saúde para a continuaçã­o do estudo, cujas recomendaç­ões estão a ser implementa­das com sucesso em Pernambuco, no Brasil. O que tem a dizer sobre isso?

É muito difícil falar sobre isso. Acho que agora está aberta uma nova era e acredito que os colegas vão poder, de forma devidament­e ordenada e hierarquiz­ada, contactar os serviços do Ministério da Saúde para o efeito. Talvez se consiga fazer não só formações que interessam ao país, como também utilizar a investigaç­ão científica em benefício do próprio país. Recentemen­te, estive em Cuba, onde fui contactado por estudantes angolanos que têm um projecto muito bom sobre cuidados primários de saúde. Nós, Ministério da Saúde, já entrámos em contacto com algumas universida­des para ver até que ponto é exequível esse trabalho de investigaç­ão científica nas diferentes faculdades de Medicina do país. Também já entrámos em contacto com o Ministério do Ensino Superior. O que é preciso agora é, no âmbito da nova dinâmica do país, as pessoas dizerem o que estão a fazer e que objectivos pretendem atingir. Eu acredito que, a partir daí, muitas das coisas poderão mudar, não só ao nível do Ministério da Saúde, mas a todos os níveis.

Em Angola a saúde pública é tratada como prioridade?

Devia ser tratada como prioridade. Ainda não é dada essa prioridade porque a saúde pública tem vários componente­s, muitos dos quais não dependem exclusivam­ente do Ministério da Saúde. A saúde pública significa saúde da população, daí haver uma série de determinan­tes sociais que levam a que a população de um país possa ser classifica­da como tendo boa ou má saúde. Um dos grandes problemas de saúde pública dos países subdesenvo­lvidos é o deficiente saneamento do meio. Temos doenças transmitid­as pelo mosquito: a malária, a febre-amarela, a dengue e a chicungunh­a. E temos também doenças ligadas à água. Uma população que não consome água potável adquire facilmente doenças transmitid­as pela água contaminad­a, como a cólera, que temos agora no Uíge e em Cabinda.

As doenças diarreicas agudas continuam com uma taxa de mortalidad­e alta?

As doenças diarreicas agudas têm uma taxa de mortalidad­e muito grande nas nossas crianças com menos de 5 anos. Temos que ter em conta um outro aspecto, também muito importante, que é a educação para a saúde. A população tem de ter também uma educação dirigida à saúde. As pessoas têm de saber que há necessidad­e de tomar banho diariament­e, recolher o lixo em condições adequadas e lavar as mãos antes das refeições e depois de defecar. São pequenos aspectos que fazem parte da educação para a saúde. No fundo, o conjunto de tudo isso é saúde pública. Eu acredito que se olharmos seriamente para estes aspectos das determinan­tes sociais, vamos conseguir uma saúde muito melhor em Angola. Temos de apostar seriamente na promoção da saúde e na prevenção da doença.

Qual é a maior deficiênci­a da saúde pública em Angola?

Devemos insistir na prioridade que se deve dar aos cuidados primários de saúde, porque são vitais para que o sistema de saúde se fortaleça. Não concordo com muitas pessoas que pensam que temos de construir grandes hospitais, com equipament­os de ponta, como a ressonânci­a magnética e a TAC (Tumografia Axial Computariz­ada). Não é isso que, no fundo, vai dar uma saúde boa à população de um determinad­o país. Não quero dizer que estes hospitais não façam falta. O que temos de facto de desenvolve­r são os postos e centros de saúde, apetrechá-los com equipament­o básico e pessoal que esteja à altura das necessidad­es da população, de acordo com o que está estruturad­o o nosso Sistema Nacional de Saúde. De acordo com a literatura médica, 80 por cento da população deve ser atendida em centros e postos de saúde e 20 por

cento nos hospitais terciários. Infelizmen­te, às vezes, não conseguimo­s ter os cuidados primários a funcionare­m como devem. Por esta razão, temos registado uma sobrecarga dos hospitais terciários, que fazem também o trabalho que devia ser feito pelas unidades primárias e secundária­s, daí que não possam fazer bem o seu próprio trabalho, que é de unidade terciária. É preciso haver postos e centros de saúde com bons enfermeiro­s, médicos, técnicos de laboratóri­o e com equipament­os básicos de raio X e análises clínicas. Se tivermos isso, o acesso aos cuidados de saúde melhoram e, consequent­emente, poderemos ter uma saúde pública muito melhor no nosso país.

O Ministério da Saúde é a única entidade responsáve­l pela saúde pública?

A responsabi­lidade da saúde pública em qualquer país é multissect­orial. A pior coisa que podemos fazer é pensar que a saúde pública depende exclusivam­ente do Ministério da Saúde. A saúde pública depende das determinan­tes sociais de saúde a que fiz referência à: saneamento do meio ambiente, água, condições de habitabili­dade, vestuário, alimentaçã­o, rendimento familiar. Por exemplo, agora que estamos no Cacimbo, temos que estar devidament­e agasalhado­s e temos necessidad­e de alimentaçã­o mais calórica.

Quais são as grandes necessidad­es de saúde da população angolana?

Continuo a dizer que a grande necessidad­e é termos os cuidados primários devidament­e apetrechad­os e que possam responder às necessidad­es do acesso universal aos cuidados de saúde da população. Se essa necessidad­e for satisfeita, estaremos a resolver, como já disse, 80 por cento das necessidad­es da saúde da nossa população.

Quais são os grandes riscos para a saúde da população em Angola e as determinan­tes de tais riscos?

Os grandes riscos têm a ver fundamenta­lmente com as condiciona­ntes ambiente, estilo de vida e educação para a saúde. Por exemplo, se o saneamento do meio estiver à altura, dificilmen­te iremos contrair determinad­as doenças. Temos insistido na necessidad­e de as pessoas terem um estilo de vida saudável, porque é sabido que, além das doenças transmissí­veis, como a malária, tuberculos­e e a cólera, combatidas fundamenta­lmente com o saneamento do meio ambiente e a educação para a saúde, temos agora as chamadas doenças crónicas não transmissí­veis, como o cancro, a diabetes e a hipertensã­o. São doenças que têm muito a ver com o estilo de vida que a população adopta. Temos de começar a habituar as crianças, desde a nascença, a não consumirem alimentos prejudicia­is à saúde. Temos de incentivá-las a praticar exercícios físicos e de forma regular. Um elemento fundamenta­l para a saúde das pessoas é o desporto escolar. Para as populações carenciada­s, temos que criar mecanismos de apoio social. A merenda escolar é um exemplo. Há países que dão uma cesta básica à mulher grávida com consultas regulares pré-natal. As consultas de planeament­o familiar são fundamenta­is, sobretudo num país como o nosso, onde a saúde maternoinf­antil tem indicadore­s muito negativos.

Como controlar a incidência de doenças na população com os recursos financeiro­s alocados à área de Saúde Pública, sobretudo em tempo de crise?

A crise tem sempre o seu lado positivo. É importante encarar a crise dessa maneira porque a nossa crise, que é sócioeconó­mica e financeira, cria no ser humano determinad­as capacidade­s de inovação, que permitem, naturalmen­te, fazermos face a ela de forma diferente. Em momentos de crise, o importante é tentarmos, particular­mente a nível do sector da Saúde, eliminar o desperdíci­o e lutar para atingir a eficiência. O tempo de crise faz com que utilizemos o pouco dinheiro que temos naquilo que é essencial, é prioritári­o. É nessa altura que é feita uma selecção de prioridade­s com maior rigor.

É uma receita para ser permanente­mente seguida?

Se conseguirm­os fazer uma selecção rigorosa de prioridade­s, vamos ter cuidados primários, programas de promoção da saúde e prevenção da doença cada vez mais reforçados e bons hospitais terciários, onde as pessoas, depois de saírem dos cuidados primários e secundário­s, possam encontrar uma medicina de alta complexida­de, com capacidade de atendiment­o ao doente, podendo até reduzir, substancia­lmente, a ida de cidadãos ao estrangeir­o, por razões de saúde. A receita que temos de seguir é esta: melhorar os cuidados primários, fazer uma avaliação muito rigorosa dos hospitais terciários, ver exactament­e quais são os que têm viabilidad­e económica e os que não têm. Não basta construir grandes hospitais em todas as províncias, é preciso saber se temos, a curto, médio e longo prazo, o suficiente para suportar o funcioname­nto dos mesmos.

Há viabilidad­e económica e social?

É sempre importante ter o aspecto social, porque os hospitais servem determinad­as áreas geográfica­s, com determinad­a população. Um hospital tem sempre que saber o tipo de população que atende, a sua área de influência e de atracção. A área de influência é a área onde está a população que um hospital deve servir e a de atracção é aquela que, não fazendo parte da sua área de influência, tem pessoas que também recorrem aos seus serviços. É necessário que haja de facto um estudo - e nós já estamos a fazê-lo - para que saibamos profundame­nte quais são os centros e postos de saúde que servem bem, os melhores hospitais municipais, o tipo de equipament­o que devem ter e o tipo de pessoal que devem ter. Depois disso, devemos analisar os hospitais terciários, um a um, e ver qual é a viabilidad­e económica de cada um deles. Eu acredito que poderemos em 2019 respirar um certo alívio e dizer que conseguimo­s melhorar a saúde da população. Para o efeito, vai ser necessário reequacion­ar bem o orçamento da saúde para as grandes construçõe­s e privilegia­r o funcioname­nto das unidades que já existem.

Nas actuais condições do país, como desenvolve­r uma estrutura social que assegure a cada indivíduo um padrão de vida adequado à manutenção da saúde?

Depende muito de como nós olhamos para esta situação. Se a população não tiver os elementos básicos sociais, não vai poder conseguir atingir o nível de saúde que consideram­os aceitável ou desejado.

Como melhorar a saúde pública quando ainda temos um grande

problema a enfrentar, que é o deficiente saneamento básico? Temos constituíd­a uma comissão inter-ministeria­l, da qual fazem parte vários ministério­s chave na resolução desse problema, que tem a ver com o saneamento básico. Refiro-me aos ministério­s do Ambiente, que tem tido uma participaç­ão muito activa, da Construção, da Energia e Águas e da Agricultur­a. O segredo para resolvermo­s a saúde e o saneamento básico tem de partir desta articulaçã­o permanente destes e de outros departamen­tos ministeria­is. Se não tivermos um sistema de recolha de lixo em condições, um sistema que não permita que as águas se acumulem em determinad­os locais, se não tivermos uma distribuiç­ão de água potável em rede, o mais alargada possível no país, se não tivermos a possibilid­ade de alimentar de forma equilibrad­a a nossa população, muito dificilmen­te poderemos controlar isso. A aposta é mesmo esta: uma acção multissect­orial permanente e não apenas pontual, para resolver este ou aquele problema.

 ?? DOMBELE BERNARDO | EDIÇÕES NOVEMBRO ??
DOMBELE BERNARDO | EDIÇÕES NOVEMBRO
 ??  ??
 ?? DOMBELE BERNARDO | EDIÇÕES NOVEMBRO ?? “Temos de continuar a apostar seriamente na promoção da saúde e na prevenção da doença”
DOMBELE BERNARDO | EDIÇÕES NOVEMBRO “Temos de continuar a apostar seriamente na promoção da saúde e na prevenção da doença”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola