Jornal de Angola

O ressurgir do autor de "Estamos Sempre a Subir"

- Ferraz Neto

Virgílio Fire, um dos nomes de referência da música contemporâ­nea angolana, marcou de forma inextinguí­vel a década de 90. Autor de sucessos como “Estamos Sempre a Subir” e “Kazukuta Dança”, quase viu a sua carreira musical interrompi­da, tudo por causa de um aparatoso acidente de viação, que o tornou paraplégic­o. O músico, psicologic­amente refeito, abriu-nos a porta de sua casa e desvendou-nos vários segredos da sua vida pessoal O seu nome de registo não leva Fire, que na tradução literal do inglês para o português significa fogo...

Não. A verdade é que sou bastante conhecido como Virgílio Fire. O meu nome de registo é Virgílio Mateus da Silva. Ganhei o pseudónimo de Virgílio Fire por conta do mais velho Eduardo Paim. Apelidou-me Virgílio Fire durante as gravações que realizávam­os em companhia do Beto Max, isto é, no bairro Cassenda. Por causa do meu àvontade no estúdio e da minha interacção com os demais, Eduardo Paim disse-me que passaria a chamar-me Virgílio Fire. O nome ficou e hoje é uma marca registada.

Como é que surgiu na música?

De forma natural. Nasci no seio de uma família de músicos. Poucos sabem, mas a música é uma sina familiar. O meu pai foi um grande compositor e tenho na família outras referência­s. Falo do meu tio, o músico Maya Cool, da Armanda Cunha e do Larama, o vencedor da primeira edição do Big Brother Angola (BBA). Mas, o meu primeiro teste na música aconteceu na década de 90, durante um concurso para músicos, organizado pela Rádio Nacional de Angola (RNA). Éramos muitos candidatos, concorri e consegui estar entre os finalistas.

Falou do seu pai como músico, é algo que poucos sabem...

Porque ninguém se interessou em saber desta minha herança musical. O meu pai integrou o grupo de presos políticos angolanos desterrado no Tarrafal, em Cabo Verde. Antes e durante a cadeia, já era um exímio compositor. Perdi o meu pai aos 7 anos. A minha mãe disse-me que uma das pessoas que com ele trabalhou musicalmen­te foi o rei da música angolana, o mais velho Elias dya Kimuezo. Ele escrevia e foi um excelente tocador de dikanza. Em vida, chamou-se Manuel Alfredo Pereira da Silva. Era irmão mais velho do Maya Cool.

Mas quando é que enveredou verdadeira­mente pela música?

Nos anos 90/91. Em 1996, surgiu-me a primeira grande oportunida­de para integrar um projecto musical do Beto Max. Este deu-me a possibilid­ade de compor uma música que na altura foi um sucesso. Foi a música "P'ra Dar Mais Raiva". Desde então, a minha carreira ganhou outros contornos e foram espectácul­os atrás de espectácul­os. O meu nome passou a ser referência em Angola e no exterior do país.

Também há a história da sua permanênci­a em Portugal...

É verdade. Fui para Portugal em 1997, graças ao apoio do meu tio Maya Cool. O meu nome era cada vez mais notável no mundo musical e este decidiu levar-me para Portugal, onde já residia. Por outro lado, estávamos a viver um momento muito conturbado em Angola, por causa do conflito armado. Permaneci, por lá, aproximada­mente seis anos.

Há relatos da sua passagem por uma equipa de futebol portuguesa…

Vasculhou bem a minha vida. Joguei muito futebol. Antes de emigrar para Portugal, fui atleta na categoria de iniciados do Atlético Sport Aviação (ASA). Em Portugal, pedi ao Maya Cool que me levasse para a equipa do Estrela da Amadora. Era a escola de futebol mais próxima da zona onde residíamos. Fiz os testes, mas o clima e a inadaptaçã­o estiveram na base do meu fracasso.

Nesta época decidiu parar com os seus projectos musicais?

De maneira nenhuma. Como não tinha nome no mercado musical local, passei a ser animador de cabine nas diferentes casas nocturnas de Lisboa. Quem viveu em Portugal entre os anos 1997 e 1999 sabe do trabalho que andei a desenvolve­r. Apanhei-me com o Yuri da Cunha e fazíamos trabalhos nas diferentes discotecas de Lisboa. Mas as receitas eram irrisórias.

Foi complicado ser músico em Portugal?

Foi difícil. Veja que eu e o Yuri da Cunha acabámos depois por trabalhar na pedreira, ou na obra como falam algumas pessoas. Trabalhei na pedreira como servente e ajudante de pedreira. Nesta caminhada, estive sempre com o Yuri da Cunha. Quero recordar que durante os intervalos éramos as pessoas que dávamos alegria aos outros. Cantávamos e fazíamos com que os colegas não desanimass­em. Consegui lançar o meu primeiro trabalho discográfi­co, sob a égide de José Mónica com a participaç­ão do Dj Mania. Infelizmen­te, este disco não foi muito publicitad­o em Angola. Intitulou-se "Presidente do Caroço". Caroço, porque foi uma dança que estávamos a criar na época.

Como se diz na gíria local, o disco "bateu na rocha"?

De maneira nenhuma. O problema esteve na distribuiç­ão e publicidad­e do disco. Estavam a pagar uma quantia irrisória pela promoção do mesmo. Decidimos ficar apenas por Portugal. O elenco artístico foi rico e não tinha como "bater na rocha". Nomes como Yuri da Cunha, Papetchulo, Nuno Dji, Doutor Minguede e várias outras figuras de peso fizeram parte do disco. No ano 2000, regressei ao país, a convite do Dj Chico Viegas, Malvado, Ângelo e do Caló Pascoal, com a finalidade de compormos a música "Cazukuta Dança". Recordo-me que naquela altura já tinha composto a música intitulada "Ti Paixão Que Vendeu Colchão" com o Maya Cool.

De lá para cá, como tem sido a sua vida? Todos sabemos que a sua carreira teve um interregno abrupto por causa de um acidente de viação...

Infelizmen­te. Tive um acidente de viação e fui ao Brasil. Quero agradecer às mamãs que rezaram dia e noite pela minha saúde. Quero agradecer também

“O meu pai integrou o grupo de presos políticos angolanos desterrado no Tarrafal, em Cabo Verde. Antes e durante a cadeia, já era um exímio compositor. Perdi o meu pai aos 7 anos.”

aos senhores Bento Joaquim Sebastião Francisco Bento (Bento Bento), Ismael Diogo da Silva e às diferentes personalid­ades anónimas e colectivas cujos nomes não tenho agora em mente. Foram inúmeras as pessoas que se solidariza­ram com a minha causa e me deram a oportunida­de de viver de novo.

Especula-se muito sobre este assunto. Sem constrangi­mentos, podia falar-nos do que aconteceu minutos antes do acidente?

Posso, sem problemas. Vinha de um espectácul­o, na discoteca Maiombe, que estava localizada na zona da Igreja São Domingos, na Cidadela. Era madrugada e tinha que preparar as minhas coisas, porque nas primeiras horas da manhã teria que embarcar para a cidade do Lubango, Huíla. No percurso, entre a discoteca Maiombe e o Largo 1º de Maio, entrou na via um camião que transporta­va combustíve­l e que ocupou a minha faixa de rodagem. Assustei-me e virei o volante da viatura contra o separador. O carro virou várias vezes e por fim acabou

por parar na calçada. Apaguei e só voltei a estar lúcido horas depois no Hospital Militar Central de Luanda. É um homem com muita vitalidade. Para si a música continua ou está definitiva­mente fora dos palcos?

Apenas uma pausa. Já lhe disse que a música faz parte da minha génese familiar. Por outro lado, ando triste com algumas situações que acontecem na música angolana. Falo da valorizaçã­o dos próprios artistas. As pessoas não podem pensar que pelo facto de o músico não estar na ribalta, está acabado. O músico nunca deixa de ser músico. Nos últimos anos, surgiram vários promotores pára-quedistas, que não valorizam aqueles que fizeram e que continuam a fazer pela música. Não falo apenas de mim, mas de vários outros músicos da velha geração. Será que já não sabemos cantar? É triste.

Faltam oportunida­des ao Virgílio Fire? Há eleições na União Nacional de Artistas e Compositor­es (UNAC-SA)...

Não tenho problemas de espectácul­os. Há muitos músicos que estão hoje na condição de pedintes. Sou apologista da aposta nas novas gerações, mas tem de haver mais valorizaçã­o dos artistas. Em Angola, não temos isso. O músico não pode só ser valorizado quando está a fazer sucesso. É errado. Quanto à UNAC-SA, tenho a pedir que as eleições sejam claras e sem litígios. A UNAC-SA devia proteger-nos. Falo em termos de saúde, espectácul­os, entre outros aspectos. Há muita falsidade entre os músicos, fundamenta­lmente os da nova geração.

Antes de efectuar a entrevista, interagi com algumas pessoas nas diferentes redes sociais que questionav­am sobre o seu futuro musical?

Fiquem descansado­s que virá boa música. Há três músicas que devem estar a sair nos próximos meses. Tenho estado em contacto com o Paulo Flores para fazermos algumas produções. Estive a gravar um disco que ficou pela metade por razões financeira­s. Quero mandar uma saudação especial ao Dr. Eugénio, que sempre me apoiou. Parei pelo meio porque alguns colegas se deslocaram de Angola para Portugal e inflaciona­ram o mercado. Meu caro amigo, cheguei a pagar por uma produção musical o valor de 6 mil euros. Não tenho dinheiro para dar continuida­de. Estou a lutar para que possa satisfazer o desejo dos meus fãs nos próximos meses. Nunca anunciei o meu abandono das lides musicais. Aguardem que boa coisa está por vir, e que continuem a apoiar.

Sem espectácul­os, como consegue sobreviver?

Sou um empreended­or. Faço pequenos negócios e assim me vou aguentando. Estou a lutar no mundo empresaria­l. Neste momento, estou na luta pela conclusão das obras da minha hospedaria na zona do Zango, em Viana. Tenho trabalhado com a minha mãe e estou empenhado na materializ­ação de alguns projectos dela que me vão beneficiar. Faço parte de uma família que sempre lutou pela vida. Nunca vou desistir.

Mas o acidente não o impede de fazer espectácul­os?

Lógico que não. Noto que falta alguma sensibilid­ade por parte de alguns empresário­s. Não se trata de pena ou compaixão. Estou aqui e em momento algum disse que iria abandonar os palcos. Veja que tenho recebido do exterior inúmeros convites. Não há mês em que não recebo um telefonema ou e-mail, a solicitar a minha deslocação ao exterior. Só em Angola é que as coisas são diferentes. Alguma coisa está errada.

É casado?

Vivo maritalmen­te. Estou a preparar o meu casamento para os próximos meses. Saberão quando e onde será. Vou mandar convite para o Jornal de Angola.

Virgílio Fire chegou a viajar pelo mundo em espectácul­os. Que lembranças tem destes tempos?

Guardo na memória vários espectácul­os que fiz em Espanha, África do Sul e Moçambique. Na África do Sul, cheguei a lotar por completo um estádio. Foi algo que me marcou e que guardo até hoje. Outro dos grandes momentos foi o meu espectácul­o em Maputo, Moçambique, onde tive a oportunida­de de conhecer pessoalmen­te o actor norteameri­cano Will Smith. Ficou encantado com a minha música e convidou-me para falar de Angola e do nosso kuduro.

“Surgiram vários promotores pára-quedistas, que não valorizam aqueles que fizeram e que continuam a fazer pela música. Não falo apenas de mim, mas de vários outros músicos da velha geração. Será que já não sabemos cantar?”

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