A beladona e o bisturi JOSÉ LUÍS MENDONÇA
Cada um dos três meninos sentados junto ao portão do parque tinha presa à boca uma garrafinha de plástico com restos de gasolina e um pano sujo no bocal. Eram já 21 horas. O dono do carro estacionou junto do portão fechado e buzinou. O guarda não aparecia. O menino mais velho, que aparentava ter 13 anos, acudiu lesto e gritou por entre as grades do portão: “Operativoooo, vem abrir o portão!”
Teve de repetir cinco vezes esta chamada, até que o mais-velho acorreu ao portão e o abriu.
À saída do parque (um enorme quintal com obra de construção parada devido à crise) o chofer da viatura abonou o menino com uma nota de cem kwanzas. Os companheiros, com os olhos esgazeados de chupar gasolina quase foram a vias de facto, pela partilha do cumbu.
O dono da viatura optou por parquear a mesma no novo endereço, a 500 metros de casa, porque ela já tinha sido assaltada três vezes, para roubarem a placa electrónica. Partiam-lhe o vidro da porta do lado do pendura, danificavam-lhe o tablier, de modo que optou pelo sacrifício de ter de pagar aos guardas do quintalão, a ter de repor o vidro e a placa constantemente.
A sociedade é equiparada a um corpo bio-sentimental. No corpo humano ocorrem, de vez em quando, erupções cutâneas, umas diagnosticadas como meros espinhos, outras apresentando sintomas e evidências clínicas de complicações mais graves, tais como furúnculos, quistos ou, no caso extremo, tumores malignos.
As nossas mães e avós, no bom tempo da família natural e simples, usavam a beladona e também o óleo de palma para extirpar os furúnculos dos nossos corpos. Punha-se uma camada de beladona no local infectado, até o furúnculo rebentar por si e, depois, trava-se da ferida. Se a erupção fosse devida ao ovo da mosca varejeira, a larva era atraída à flor da pele por uma gota de óleo de palma. Depois, com aquele jeito que só as nossas mamãs sabiam, apertavam a borbulha e o bicho saía.
A delinquência, o aumento da criminalidade e a pretensa desobediência civil podem ser consideradas borbulhas sociais. E tal como a sua manifestação no corpo humano é diagnosticada como o acúmulo de impurezas no sangue ou a deposição de um agente externo (caso da mosca varejeira), as borbulhas do corpo social também se originam da acumulação de determinadas impurezas, facilmente diagnosticáveis.
Para algumas dessas borbulhas, a solução exige uma punção com bisturi e, depois, um dreno da matéria infectada. É o caso da repressão violenta das gangues armadas que actuam sem dó nem piedade. Porém, há outra espécie de borbulhas sociais menos dolorosas, o pequeno roubo, as manifestações de descontentamento desqualificadas como desobediência civil, que podem muito bem ser extirpadas com a beladona e o óleo de palma: diálogo inclusivo; acção social e prevenção da criminalidade, pela acção holística de vários órgãos do Executivo.
A acção musculada da polícia, desde que a sociedade se constituiu (veja-se o assassinato de Abel pelo seu irmão Caim) só pode surtir efeito temporário. Háde voltar sempre, como fenómeno milenar derivado das desigualdades sociais, originadas pela acumulação dos meios de produção na mão de uma minoria. O que se pede é mitigar a criminalidade e a delinquência. Para este efeito, há que atacar as causas mais remotas da sua potencial erupção social.
Os meninos de rua, com a vida que levam, sem futuro palpável, só podem dar em cidadãos activamente empenhados na delinquência, a menos que se repense o paradigma de uma acção social efectiva que atinja as famílias dos bairros mais pobres. Para isso, o Executivo terá de socorrer-se de apoios de instituições com certa experiência neste domínio, como é o caso da Pastoral da Criança e ampliarlhes a acção. Esta ampliação da acção social exige fundos, exige vontade política.
O que é que os políticos que governam Angola estavam à espera, senão do emergir da violência urbana, os raptos, os crimes, a delinquência e as manifestações, depois de se exaurir os cofres do Estado e da exportação dos ovos de ouro da nossa Economia?
Ele há um tumor maligno invisível a olho nu, escondido no âmago do corpo social, que geralmente tem origem na reiteração de vícios do poder: a corrupção e as práticas que gravitam na órbita desta: nepotismo, cleptocracia; autocracia; anti-probidade, etc. E é deste tumor que saem as metástases e as borbulhas sociais que a polícia se esforça por rebentar, a ferro e fogo, sem êxito.
Ora, se não se extirpa, com soluções de quimioterapia constitucional e judicial essa causa remota, o cancro alastra e pode causar a morte do próprio corpo social: o Estado de Direito.
A acção musculada da polícia, desde que a sociedade se constituiu (veja-se o assassinato de Abel pelo seu irmão Caim) só pode surtir efeito temporário. Há-de voltar sempre, como fenómeno milenar derivado das desigualdades sociais, originadas pela acumulação dos meios de produção na mão de uma minoria. O que se pede é mitigar a criminalidade e a delinquência