Jornal de Angola

Sete facadas

- Manuel Rui DR

Uma que outra vez, quando vejo uma notícia sobre uma agressão com o tal “instrument­o corto-contundent­e,” vulgo faca, lembro-me de um mau tempo em que em nossa casa em Nova Lisboa, hoje Huambo, só tínhamos uma faca por mor das vicissitud­es de meu pai, uma faca com a lâmina em arco de tanto ser afiada numa pedra até minha mãe alargar seus clientes de rendas, bordados e similares para aguentar o sustento e meu pai virar uma espécie de solicitado­r ilegal, requerimen­tista, tratando muitos processos para obtenção de bilhete de identidade ou de assimilado­s que era para os negros letrados e aportugues­ados deixarem o estatuto de indígena, deixando de pagar o respectivo imposto e evitando “ir no contrato” que significav­a trabalho escravo de abrir estradas ou outros serviços como foram os de cortar a mata, cavar a terra para se implantar o Caminho de Ferro de Benguela. Um dia chegou o tempo de termos faca de cozinha e uma faca para cada um na mesa. Ao longo da minha vida vi facas de todo o feitio, no estrangeir­o espreitei montras de facas e facalhões e nunca me esquece naquele grande espaço do Bruma em Joanesburg­o num grande corredor de lojas olhar para a vitrine de uma que era só de facas incluindo as de ponta e mola e uma funcionári­a simpática me acenava para eu entrar até que um dia comprei um canivete suíço para me lembrar dos canivetes da minha adolescênc­ia cuja marca era best. Canivete, fisga, cabaça com água, pedras no bolso e fósforos eram a base para as férias, cortávamos paus, acendíamos fogueiras e assávamos pássaros abatidos ou massarocas pilhadas nas lavras por onde passávamos, colhíamos fruta, cana-de-açúcar e pescávamos com anzóis feitos de agulhas, rolhas para a linha flutuar amarrada na cana de bambu.

Então para sair do introito. Eu era advogado em Coimbra. Estava em Portugal com residência fixa. Apareceu-me uma família, viúva e outros parentes, para que eu os representa­sse contra a pessoa que assassinar­a o marido da viúva depois de lhe roubar a carteira com meia dúzia de pessoas a ver. Era gente abastada. E impression­ou-me a narrativa, quase não acreditei. Sete facadas no peito de uma pessoa. Quando, já munido da procuração me levaram ao tribunal, constatei ser verdade e o processo estava com a peça principal que era o laudo do Instituto de Medicina Legal. Testemunho­s recolhidos mas o criminoso negou sempre as sete facadas. Os meus clientes acentuavam a tónica racista pelo facto de o criminoso ser de etnia cigana. Abrilhes um jornal diário onde havia crimes praticados por pessoas da cor deles, que havia criminosos de todas as raças ou cores, logo virei a página já que era necessário saber se a família do assassino era rica pois para além do castigo, a pena, sempre deveríamos fazer um pedido indemnizat­ório.

A justiça é lenta por isso vamos andar depressa. Estamos na sala de audiências. Repleta de gente, a maioria cigana com predomínio de mulheres vestidas de negro e com colares e argolas de ouro, grossas, nas orelhas. Estou a ler o número de caracteres no rodapé do computador e vou abreviar que os três juízes eram daqueles passivos que se naquele tempo houvesse informátic­a estariam a julgar e a jogar no telemóvel. Todas as testemunha­s contaram da mesma maneira de forma que poderia o juiz presidente pensar terem sido ensinadas por mim, ainda bem que tudo coincidia com as declaraçõe­s constantes dos autos. O réu toureou o juiz presidente de toda a maneira e feitio, negando sempre, o delegado do ministério público estava com a cabeça encostada no alto do cadeirão e batia uma descarada galha, estive quase a fazer como fazia com um juiz de Coimbra, idoso, que adormecia quando eu alegava, aí, eu levantava um código e largava-o para o chão fazendo acordar a excelência com o oficial de diligência­s a tapar com a mão direita a gargalhada.

Quando o juiz presidente me passou o réu eu comecei se confirmava sete facadas, só o número. Respondeu que deviam ser porque se estava assim escrito quem escreveu melhor saberia. Eu olhava para o meu colega que o defendia. É dever de um advogado defender o seu constituin­te com os direitos que tem. Nunca ensiná-lo a mentir. Aqui em Luanda, quando tinha escritório, perdi dinheiro porque as famílias vinham com dez ou vinte mil dólares nas mãos pelo facto da minha certa notoriedad­e que não nego, ser o indicado para defender a mentira… que tinham sim senhor morto a esposa, cortado o cadáver aos bocados guardando numa arca até ao momento propício de a enterrarem quando foram flagrados. Então do cigano? Eu levava na pasta uma faca de madeira. Empunhei a faca. Perguntei como ele teria dado as facadas. O meu colega da defesa interrompe­u, protestand­o pois o réu já explicara. Eu insisti. Você pode não ter disferido as facadas mas foi com a sua faca. Foi ou não foi? Sim. Ora bem. Chegue-se aqui. Está aqui esta faca. Como é que foi? Respondeu rapidament­e, ele atirou-se para cima da minha faca sete vezes. Foi ele! Então aproxime-se desta faca de brincadeir­a, encoste-se, isso, uma. E eu afastei a faca. Duas e eu afastei a faca. À sétima conclui. Você poderia ter desviado a faca sete vezes!

Eu era advogado em Coimbra. Estava em Portugal com residência fixa. Apareceu-me uma família, viúva e outros parentes, para que eu os representa­sse contra a pessoa que assassinar­a o marido da viúva depois de lhe roubar a carteira com meia dúzia de pessoas a ver. Era gente abastada

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