Sete facadas
Uma que outra vez, quando vejo uma notícia sobre uma agressão com o tal “instrumento corto-contundente,” vulgo faca, lembro-me de um mau tempo em que em nossa casa em Nova Lisboa, hoje Huambo, só tínhamos uma faca por mor das vicissitudes de meu pai, uma faca com a lâmina em arco de tanto ser afiada numa pedra até minha mãe alargar seus clientes de rendas, bordados e similares para aguentar o sustento e meu pai virar uma espécie de solicitador ilegal, requerimentista, tratando muitos processos para obtenção de bilhete de identidade ou de assimilados que era para os negros letrados e aportuguesados deixarem o estatuto de indígena, deixando de pagar o respectivo imposto e evitando “ir no contrato” que significava trabalho escravo de abrir estradas ou outros serviços como foram os de cortar a mata, cavar a terra para se implantar o Caminho de Ferro de Benguela. Um dia chegou o tempo de termos faca de cozinha e uma faca para cada um na mesa. Ao longo da minha vida vi facas de todo o feitio, no estrangeiro espreitei montras de facas e facalhões e nunca me esquece naquele grande espaço do Bruma em Joanesburgo num grande corredor de lojas olhar para a vitrine de uma que era só de facas incluindo as de ponta e mola e uma funcionária simpática me acenava para eu entrar até que um dia comprei um canivete suíço para me lembrar dos canivetes da minha adolescência cuja marca era best. Canivete, fisga, cabaça com água, pedras no bolso e fósforos eram a base para as férias, cortávamos paus, acendíamos fogueiras e assávamos pássaros abatidos ou massarocas pilhadas nas lavras por onde passávamos, colhíamos fruta, cana-de-açúcar e pescávamos com anzóis feitos de agulhas, rolhas para a linha flutuar amarrada na cana de bambu.
Então para sair do introito. Eu era advogado em Coimbra. Estava em Portugal com residência fixa. Apareceu-me uma família, viúva e outros parentes, para que eu os representasse contra a pessoa que assassinara o marido da viúva depois de lhe roubar a carteira com meia dúzia de pessoas a ver. Era gente abastada. E impressionou-me a narrativa, quase não acreditei. Sete facadas no peito de uma pessoa. Quando, já munido da procuração me levaram ao tribunal, constatei ser verdade e o processo estava com a peça principal que era o laudo do Instituto de Medicina Legal. Testemunhos recolhidos mas o criminoso negou sempre as sete facadas. Os meus clientes acentuavam a tónica racista pelo facto de o criminoso ser de etnia cigana. Abrilhes um jornal diário onde havia crimes praticados por pessoas da cor deles, que havia criminosos de todas as raças ou cores, logo virei a página já que era necessário saber se a família do assassino era rica pois para além do castigo, a pena, sempre deveríamos fazer um pedido indemnizatório.
A justiça é lenta por isso vamos andar depressa. Estamos na sala de audiências. Repleta de gente, a maioria cigana com predomínio de mulheres vestidas de negro e com colares e argolas de ouro, grossas, nas orelhas. Estou a ler o número de caracteres no rodapé do computador e vou abreviar que os três juízes eram daqueles passivos que se naquele tempo houvesse informática estariam a julgar e a jogar no telemóvel. Todas as testemunhas contaram da mesma maneira de forma que poderia o juiz presidente pensar terem sido ensinadas por mim, ainda bem que tudo coincidia com as declarações constantes dos autos. O réu toureou o juiz presidente de toda a maneira e feitio, negando sempre, o delegado do ministério público estava com a cabeça encostada no alto do cadeirão e batia uma descarada galha, estive quase a fazer como fazia com um juiz de Coimbra, idoso, que adormecia quando eu alegava, aí, eu levantava um código e largava-o para o chão fazendo acordar a excelência com o oficial de diligências a tapar com a mão direita a gargalhada.
Quando o juiz presidente me passou o réu eu comecei se confirmava sete facadas, só o número. Respondeu que deviam ser porque se estava assim escrito quem escreveu melhor saberia. Eu olhava para o meu colega que o defendia. É dever de um advogado defender o seu constituinte com os direitos que tem. Nunca ensiná-lo a mentir. Aqui em Luanda, quando tinha escritório, perdi dinheiro porque as famílias vinham com dez ou vinte mil dólares nas mãos pelo facto da minha certa notoriedade que não nego, ser o indicado para defender a mentira… que tinham sim senhor morto a esposa, cortado o cadáver aos bocados guardando numa arca até ao momento propício de a enterrarem quando foram flagrados. Então do cigano? Eu levava na pasta uma faca de madeira. Empunhei a faca. Perguntei como ele teria dado as facadas. O meu colega da defesa interrompeu, protestando pois o réu já explicara. Eu insisti. Você pode não ter disferido as facadas mas foi com a sua faca. Foi ou não foi? Sim. Ora bem. Chegue-se aqui. Está aqui esta faca. Como é que foi? Respondeu rapidamente, ele atirou-se para cima da minha faca sete vezes. Foi ele! Então aproxime-se desta faca de brincadeira, encoste-se, isso, uma. E eu afastei a faca. Duas e eu afastei a faca. À sétima conclui. Você poderia ter desviado a faca sete vezes!
Eu era advogado em Coimbra. Estava em Portugal com residência fixa. Apareceu-me uma família, viúva e outros parentes, para que eu os representasse contra a pessoa que assassinara o marido da viúva depois de lhe roubar a carteira com meia dúzia de pessoas a ver. Era gente abastada