Jornal de Angola

O Jogo Poético

- Fernando Pereira

“Jogamos tal como vivemos, somos como jogamos e o futebol é o jogo que escolhemos. Onde há uma bola está envolvido até à alma o projecto de um homem. Crianças que correm e a mesma aparência sugere-nos uma realidade diferente. Nalguns sítios, a bola parece uma barriguita inchada pela fome. Noutros um mundo que é possível dominar. Jogam com bolas que só para eles parecem bolas e chocam ou esquivam-se, riem ou chateiam-se, e tudo serve para irem ajustando o seu delicado sistema de comunicaçã­o. O futebol a todos confere direitos: a egoístas ou generosos, valentes ou cobardes, exibicioni­stas, lestos ou violentos.” Recolho este excerto de um texto de Jorge Valdano, campeão do mundo pela selecção da Argentina, um dos eleitos que ao longo dos anos melhor tem traduzido o futebol fora do contexto das “comentaric­es”, dos muitos que vaticinam perentório­s o que se vai passar durante o jogo, e que depois acabam por dar o dito por não dito quando fazem a avaliação no final. Um dos mundiais com o final mais dramático de sempre foi o de 1950, quando o Uruguai bateu o Brasil no Maracanã, perante a incredulid­ade e a tristeza povoada de uma mole imensa de 200.000 brasileiro­s, expressão local de um choro colectivo de uma nação que organizou um campeonato do Mundo para o vencer, sem sequer pensar que a derrota em futebol, como na vida, é um resultado possível. Cada país, cada cultura, tem a sua maneira de integrar o negro ou, dito de outra maneira, o modo como o negro se impôs, no caso brasileiro, no futebol, superando barreiras sociais e raciais. Como noutros países o futebol chegou ao Brasil levado por ingleses a trabalhar em fábricas como a Companhia Progresso Industrial do Brasil, cujo mestre de estamparia, John Stark, fundou o TheBangu Athletic Club: sete eram ingleses, um italiano e só um brasileiro, branco. O futebol começou como desporto de elites e só mais tarde se popularizo­u. No Brasil, a implantaçã­o do profission­alismo na década de trinta “abriu as portas dos grandes clubes para jogadores profission­ais negros, mulatos e de origem humilde”. O “desastre de 16 de Julho” de 1950, com o Maracanã em festa antecipada para a final com o Uruguai, levou o Brasil a profunda depressão, encontrand­o nos negros, Barbosa – guarda-redes cuja imagem, depois do golo de Gighia, é a personific­ação da derrota – Juvenal e Bigode. “Culpou-se o preto pela derrota, melhor os três pretos. Os brancos, diz Mário Filho (“cujo nome, merecidame­nte, crismou o monumental estádio construído no bairro do Maracanã, Rio de Janeiro, para a Copa do Mundo de 1950”) não foram acusados de nada”. Barbosa até à sua morte, ocorrida há meia dúzia de anos, suportou sempre esse “fardo” da pior humilhação que o Brasil terá tido, até que a Alemanha lhe conseguiss­e dar algum descanso quando no Mundial de 2014 deu 7-1 a uma selecção sem brilho orientada por um tipo de extrema-direita, Filipe Scolari. Barbosa para perpetuar a sua tristeza imensa comprou o poste e as traves da baliza onde sofreu o fatídico golo de Gigghia e com essa madeira mandou fazer uma cruz, símbolo do seu martírio. Em 1954 o Brasil foi derrotado pela Hungria de Puskas, Kocsis e Czibor com uma equipa que integrava dois grandes jogadores negros, Djalma Santos e Didi. No Campeonato do Mundo de 58, o selecciona­dor Vicente Feolla “escalava” o branco preterindo o negro. O capitão Bellini, branco, loiro, ficou para a história pelo gesto de levantar o “caneco” acima da cabeça, para que todos a pudessem ver; Garrincha, mulato, só entrou depois da pressão do mestre Didi. Com Pelé, Garrincha na direita, mais o “centro-avante” Vavá e o ponta-esquerda Zagalo, o Brasil derrotou a URSS e partiu para a conquista do título. Um mulato e um preto tornaram-se os ídolos da conquista do 1º campeonato do mundo para o Brasil Este texto tem pouco a ver com o Mundial da Rússia, mas tem com a história dos Mundiais, que começaram em 1930, na capicua dos 88 anos!

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