Os jornais em papel
Fazia tempo que não tocava em jornais, - os diários e os semanários-, angolanos: surpreende que tenham surgido tantos nos últimos cinco anos, logo agora que têm a concorrência dos digitais
Confesso que, com os jornais em papel já tive as mais estrafalárias experiências: normalmente, elas podem variar se somos somente leitores ou se, além disso, também escrevemos para eles. Teremos com eles relações muito distintas se sabemos ou não ler e, depois de lidos, podemos dar-lhe diferentes usos, sendo alguns deles escatológicos: os jornais em papel nunca nos deixam indiferentes. Quando se desactualizam têm sempre outra vida: reciclá-los tornou-se um processo quase automático.
Já houve um tempo em que de tão corrosivos alguns deles chamamos-lhes de pasquins. Aqui e além-fronteiras, há alguns que, tanto pelo alto grau de infalibilidade como pelo rigor informativo, são míticos e conservam certa aura. Não me admira que assim seja: a primeira vez que vi um artigo meu, impresso na página de um jornal, eu tive dificuldades em parar de ler uma e outra vez e, literalmente, naquele dia, dormi com ele: não abracei aquela página de jornal porque não podia. Mas, durante a noite, rebolei variadíssimas vezes sobre aquele jornal e, admito, foi uma das experiências mais singulares que alguma vez tive.
Na manhã seguinte, o papel amarrotado pelo meu corpo passou a ser a prova de um pacto que procuro renovar e ainda dura: escrever e procurar a cumplicidade dos leitores é o grande desafio, saber das opiniões deles sobre aquilo que escrevemos faz-nos melhorar. É uma experiência vital.
Têm uma textura e cheiro característico, surgiram há mais de dois mil anos com a “Acta diurna” do Imperador romano Júlio César, eles massificaram-se com o desenvolvimento da imprensa por Gutemberg, é no Japão onde mais os vendem e contando-os, se incluirmos as revistas, actualmente existirão em Angola uns trinta títulos de jornais.
Ao folheá-los, não tarda e uns mais que os outros, os dedos e as mãos ficam com uma capa perceptível e, mesmo sem darmos muita atenção, sem olhálos ou os cheirar consciente e demoradamente, ficaremos com um aroma que nos recordará à máquina ou ao tipo de papel: é uma experiência física.
Fazia tempo que não tocava os jornais, - os diários e os semanários-, angolanos: surpreende que tenham surgido tantos nos últimos cinco anos, logo agora que têm a concorrência dos jornais digitais. Havia algum que nunca tinha tocado e outros que o ardina recitou os nomes como se orasse em voz alta, tentando convencer-me a comprar, era a primeira vez que ouvia falar deles.
Passando de uma página à outra e de um jornal a outro, dá para ver que há uns jornais mais agradáveis que outros: este diário que você está a ler, com o seu cheiro próprio e a sua mancha antiga, continua a ser o que mais impacto tem entre nós.
Há pluralismo nas linhas editoriais, nas formas, nos conteúdos, nos tamanhos e nos ângulos a partir dos quais se abordam as diferentes matérias: a tendência a falar da política como um romance de poder e o detalhe e a ligeireza como alguns temas são escritos dão uma ideia do vocabulário em voga, do uso chavões que pairam no ar dos tempos e quais são as principais expectativas colectivas. Em muitos casos, carecem de profundidade e optam pelo escândalo ou pelo sensacionalismo: frequentemente o título da matéria não condiz com o narrado e proliferam os pseudónimos para esconder maldadezinhas.
Os arquivos digitais, em pdf, dos jornais circulam céleres e ficamos sem saber se continuam a ser tão rentáveis como antes: reencaminhá-los entre os que estão na lista de contactos dos nossos telefones passou a ser um acto quase intuitivo: vamos perdendo o gosto de tê-los e de estar com eles, coisa que me angustia um pouco. Mas, ninguém sabe ao certo o que será deles dentro de uma década.
Ali aonde eles chegam a estar sentados a ler jornais aos fins de semana é um hábito quase generalizado: sair e ir comprar jornais nas manhãs de sábado e de domingo ou esperar que os ardinas cheguem às nossas zonas de residência para interpelá-los ao passar, ou correr atrás deles antes que desapareçam, é um ritual que um dia recordaremos com nostalgia. Gostamos de tocá-los, lê-los silenciosamente e repetidas vezes, para nos certificar que nada nos escapa.
Quando não são subvencionados ou os proprietários podem distribuilos gratuitamente, a maioria dos jornais em papel vive da publicidade, mas, os jornalistas e colunistas, quando ganham ou recebem uma avença, ganham menos do que deveriam e a avença é mesmo simbólica: é como se prestassem um serviço tendo a visibilidade como moeda de troca algo que, com o tempo, só pode ter efeitos perversos.
Experiência física e de vida, os jornais de papel marcarão uma época da história do jornalismo: são uns esquisitos objectos de memória e, durmamos com eles ou não, até mesmo quando não falam bem de nós porque nos questionam, podemos estabelecer uma relação fascinante: é gratificante, pode ser estrafalária e aqueles que a experimentam nunca mais podem viver sem ela.