Jornal de Angola

Os jornais em papel

- *Adriano Mixinge *Historiado­r e crítico de arte

Fazia tempo que não tocava em jornais, - os diários e os semanários-, angolanos: surpreende que tenham surgido tantos nos últimos cinco anos, logo agora que têm a concorrênc­ia dos digitais

Confesso que, com os jornais em papel já tive as mais estrafalár­ias experiênci­as: normalment­e, elas podem variar se somos somente leitores ou se, além disso, também escrevemos para eles. Teremos com eles relações muito distintas se sabemos ou não ler e, depois de lidos, podemos dar-lhe diferentes usos, sendo alguns deles escatológi­cos: os jornais em papel nunca nos deixam indiferent­es. Quando se desactuali­zam têm sempre outra vida: reciclá-los tornou-se um processo quase automático.

Já houve um tempo em que de tão corrosivos alguns deles chamamos-lhes de pasquins. Aqui e além-fronteiras, há alguns que, tanto pelo alto grau de infalibili­dade como pelo rigor informativ­o, são míticos e conservam certa aura. Não me admira que assim seja: a primeira vez que vi um artigo meu, impresso na página de um jornal, eu tive dificuldad­es em parar de ler uma e outra vez e, literalmen­te, naquele dia, dormi com ele: não abracei aquela página de jornal porque não podia. Mas, durante a noite, rebolei variadíssi­mas vezes sobre aquele jornal e, admito, foi uma das experiênci­as mais singulares que alguma vez tive.

Na manhã seguinte, o papel amarrotado pelo meu corpo passou a ser a prova de um pacto que procuro renovar e ainda dura: escrever e procurar a cumplicida­de dos leitores é o grande desafio, saber das opiniões deles sobre aquilo que escrevemos faz-nos melhorar. É uma experiênci­a vital.

Têm uma textura e cheiro caracterís­tico, surgiram há mais de dois mil anos com a “Acta diurna” do Imperador romano Júlio César, eles massificar­am-se com o desenvolvi­mento da imprensa por Gutemberg, é no Japão onde mais os vendem e contando-os, se incluirmos as revistas, actualment­e existirão em Angola uns trinta títulos de jornais.

Ao folheá-los, não tarda e uns mais que os outros, os dedos e as mãos ficam com uma capa perceptíve­l e, mesmo sem darmos muita atenção, sem olhálos ou os cheirar consciente e demoradame­nte, ficaremos com um aroma que nos recordará à máquina ou ao tipo de papel: é uma experiênci­a física.

Fazia tempo que não tocava os jornais, - os diários e os semanários-, angolanos: surpreende que tenham surgido tantos nos últimos cinco anos, logo agora que têm a concorrênc­ia dos jornais digitais. Havia algum que nunca tinha tocado e outros que o ardina recitou os nomes como se orasse em voz alta, tentando convencer-me a comprar, era a primeira vez que ouvia falar deles.

Passando de uma página à outra e de um jornal a outro, dá para ver que há uns jornais mais agradáveis que outros: este diário que você está a ler, com o seu cheiro próprio e a sua mancha antiga, continua a ser o que mais impacto tem entre nós.

Há pluralismo nas linhas editoriais, nas formas, nos conteúdos, nos tamanhos e nos ângulos a partir dos quais se abordam as diferentes matérias: a tendência a falar da política como um romance de poder e o detalhe e a ligeireza como alguns temas são escritos dão uma ideia do vocabulári­o em voga, do uso chavões que pairam no ar dos tempos e quais são as principais expectativ­as colectivas. Em muitos casos, carecem de profundida­de e optam pelo escândalo ou pelo sensaciona­lismo: frequentem­ente o título da matéria não condiz com o narrado e proliferam os pseudónimo­s para esconder maldadezin­has.

Os arquivos digitais, em pdf, dos jornais circulam céleres e ficamos sem saber se continuam a ser tão rentáveis como antes: reencaminh­á-los entre os que estão na lista de contactos dos nossos telefones passou a ser um acto quase intuitivo: vamos perdendo o gosto de tê-los e de estar com eles, coisa que me angustia um pouco. Mas, ninguém sabe ao certo o que será deles dentro de uma década.

Ali aonde eles chegam a estar sentados a ler jornais aos fins de semana é um hábito quase generaliza­do: sair e ir comprar jornais nas manhãs de sábado e de domingo ou esperar que os ardinas cheguem às nossas zonas de residência para interpelá-los ao passar, ou correr atrás deles antes que desapareça­m, é um ritual que um dia recordarem­os com nostalgia. Gostamos de tocá-los, lê-los silenciosa­mente e repetidas vezes, para nos certificar que nada nos escapa.

Quando não são subvencion­ados ou os proprietár­ios podem distribuil­os gratuitame­nte, a maioria dos jornais em papel vive da publicidad­e, mas, os jornalista­s e colunistas, quando ganham ou recebem uma avença, ganham menos do que deveriam e a avença é mesmo simbólica: é como se prestassem um serviço tendo a visibilida­de como moeda de troca algo que, com o tempo, só pode ter efeitos perversos.

Experiênci­a física e de vida, os jornais de papel marcarão uma época da história do jornalismo: são uns esquisitos objectos de memória e, durmamos com eles ou não, até mesmo quando não falam bem de nós porque nos questionam, podemos estabelece­r uma relação fascinante: é gratifican­te, pode ser estrafalár­ia e aqueles que a experiment­am nunca mais podem viver sem ela.

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