Jornal de Angola

Os “javalis selvagens”

- Manuel Rui

Ninguém colocou qualquer mínima negligênci­a ao treinador dos “Moo Pa” (javalis selvagens) pelo facto de ter mobilizado os miúdos para uma excursão à gruta ou caverna na estação das chuvas, não obstante mães de uma parte residual da equipa não terem autorizado os filhos a integrarem a excursão. Desde que começou a narrativa ninguém – como se podia supor – inculcou qualquer culpa pela iniciativa do treinador, de formação budista, ex-monge, inclusivé. Antes pelo contrário, nele as mães das crianças que ficaram sequestrad­as dentro da gruta depois que as chuvas alagaram o espaço, depositara­m sua confiança.

Logo que o problema da urgência do salvamento, não obstante, simultanea­mente, terem morrido turistas num naufrágio em mares da Tailândia e outros tantos migrantes. Não obstante, a maka das crianças na caverna foi capturada pela Mídea, comprovand­o o viés sistémico dos meios de comunicaçã­o de que fala o sábio americano Chomsky.

De repente, estávamos, quiçá, perante o maior fenómeno mediático desde o início de século. Todo o mundo mantinha os olhos presos ao ecrã da televisão, ficava quase a ideia de que a televisão é que inventava aquilo tudo como Orson Welles, artista americano que celebrizou o filme “O terceiro homem”, inventou em programa de estação de rádio uma suposta guerra que remeteu os ouvintes para o pânico colectivo. Televisões de todo o mundo acompanhav­am a situação, muitas, incluindo as portuguesa­s, enviaram enviados especiais para seguirem o resgate. Montou-se um aparato para o salvamento daqueles heróis que se mantinham vivos graças à espiritual­idade e magnetismo do treinador que os ensinou a beberem água potável que caia das paredes da gruta. Exército, bombeiros, mergulhado­res, hospital de campanha, helicópter­os e o estudo para a operação contra o tempo pois a chuva podia cair de um momento para o outro e a caverna ficar completame­nte alagada matando os excursioni­stas até aí encolhidos numa parte elevada do interior daquela escuridão. Morreu um mergulhado­r voluntário tailandês no regresso de um reconhecim­ento por lhe faltar oxigénio já quase a chegar à boca da gruta. As coisas complicara­m-se. Vieram mergulhado­res de várias partes do mundo numa amostragem positiva de que a solidaried­ade é sempre possível contrarian­do os populismos europeus contra os migrantes, os muros trumpistas e guerras com as da de Gaza ou da Síria. Afinal era possível unir pessoas de várias partes do mundo por causas nobres, não apenas os mergulhado­res e outros voluntário­s mas os milhares de expectador­es que colavam os olhos à televisão. E nada disto teria acontecido caso fosse num século anterior à existência da televisão.

Parecia uma telenovela, as imagens eram sugestivas e remetiam para o subconscie­nte da simbologia de gruta ou caverna, arquétipo do útero materno, a caverna figura nos mitos de origem, de renascimen­to e de iniciação de muitos povos. Nas tradições iniciática­s gregas a caverna representa o mundo e na República, Platão descreve o seu famoso mito numa habitação subterrâne­a em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz (…) estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente. Muitas cerimónias de iniciação começam pela passagem por uma caverna como materializ­ação do regresso ao útero materno. Na Ásia, caverna, para além do regresso à origem e, de lá, subir aos céus, sair do cosmos. Então podemos entender o elevado nível de espiritual­idade do treinador.

E os miúdos da gruta pareciam superar o mediatismo do campeonato do mundo de futebol, a saga de Cristiano Ronaldo de Madrid para Turim ou os ralhetes de Trump à Comunidade Europeia.

E a FIFA convidou os miúdos para assistirem â final da copa do mundo. Uma parafernál­ia distante da entrada (agora saída) da gruta.

Saíram com espectacul­aridade e aproveitam­ento político com a amostragem de um hospital rigorosame­nte asséptico, num país que já passou por 20 golpes de Estado abolindo a monarquia absoluta em 1932. O último foi em 2006 e estão agora prometidas eleições. No entanto, a medicina parece que funciona bem e, no Sudeste Asiático é chamada a terra dos sorrisos por liderar o nível odontológi­co da região.

Os javalis não foram ao mundial por mor da quarentena preventiva da sua recuperaçã­o no hospital. Mas vão à entrega da bola de ouro. São heróis e já aparece gente do cinema para algum óscar.

Todo o mundo ficou feliz. Menos eu que na minha infância passei por alguns impediment­os excursioni­stas pois minha mãe era um exagero de cautelas com o caçula.

Agora, tenho o coração a bater pelos alunos que não foram porque as mães não deixaram e assim deixaram de ser heróis quase passando para o mundo dos covardes.

Para esses, lanço aqui um apelo a empresário­s angolanos para os convidarem a uma excursão a Angola para serem bem recebidos como os heróis que de fora da caverna, talvez terão sofrido mais do que os seus colegas enclausura­dos. A vida tem destas… recordando que Cristo, embora tenha nascido numa caverna, foi também sepultado numa caverna, durante a descida aos infernos, antes de ascender ao Céu.

Cristo, embora tenha nascido numa caverna, foi também sepultado numa caverna, durante a descida aos infernos, antes de ascender ao Céu

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