Delírio Africano
Aterrei na Europa pela primeira vez em Março de 1986. O primeiro país que vi foi a França e a primeira imagem a de um negro a limpar a rua. A Mana Violeta Pena levou-me para um local onde havia vários barbeiros para negros. Uns senhores das Caraíbas cortaram-me o cabelo enquanto cantavam num patois que tinha ouvido na música zouk. Não longe daquele local, havia grupos de jovens de origem da África do Norte a conviver. Nunca tinha visto árabes. Para mim, a França foi sempre esta diversidade. Anos mais tarde, vi na chique rua de Champs Elysés, onde os congoleses compram sapatos que custam milhares de dólares, senhoras que montam fogareiros para vender maçarocas assadas. Para mim, o poderio da França vem daquela criatividade espontânea que resulta da fusão de tradições e experiências. A vitória da selecção francesa na copa do mundo pode ser atribuída a esta vitalidade.
No início da copa, eu disse que não podia com aquele tipo de eventos porque resultavam num patriotismo e jingoismo que facilmente se transformava numa tacanhice cegante. Um dos aspectos mais notáveis da selecção francesa foi o número considerável de jogadores negros de origem africana. Isto resultou numa manifestação de orgulho racial em todo o continente africano que, às vezes, tinha um tom desconcertante.
Os jogadores negros da selecção francesa são franceses de origem africana. Os laços vindos do processo colonial e mesmo a globalização estão a resultar numa inevitável hifenização de nacionalidades e culturas. Nas redes sociais, houve clipes dos membros da selecção francesa a cantar e dançar música da África Ocidental. Muitos afirmaram que era a prova de que eram africanos autênticos.
Depois houve fotos das estrelas do futebol francês com as suas namoradas -- todas eram brancas. Houve um grito altíssimo e suspiro seguido por generalizações e alegações de sempre: lá vão os pretos que abandonaram as mulheres negras do tempo em que eram ninguéns para se juntarem às mulheres brancas no momento de sucesso. Só que muitos desses jovens nasceram na França, cresceram com meninas brancas e vivem num mundo poroso e diversificado.
Os negros que lamentavam que as namoradas dos jogadores franceses são brancas passam facilmente a cantar do mesmo hinário que os racistas exclusivistas e violentos da extrema direita do Le Pen para quem os negros diluíram a pureza da equipa francesa.
O xinguilamento africano que se seguiu a vitória da França na copa do mundo faz lembrar o delírio no continente com a eleição de Barak Obama como o primeiro Presidente negro nos Estados Unidos em 2008. Lembro-me de que na altura estava na Costa do Marfim onde, nos bairros mais pobres, as pessoas gastavam fortunas para comprar camisolas com a imagem de Obama. Mas Obama era um Presidente americano, um produto do sistema político americano. A selecção francesa é, também, um produto da França!
O falecido académico queniano, Ali Mazrui, dizia que uma das grandes falhas dos Africanos é se fazer levar facilmente pelas aparências. Segundo o Mazrui, africano é facilmente impressionado pelo o Mercedes Benz. Porém, são poucos os africanos que tentam saber em profundidade a tecnologia que está por trás da durabilidade de um Mercedes. Da mesma forma, dizia Mazrui, o africano que pode não resiste comprar um relógio Rolex. Porém, são poucos que se preocupam com a técnica que resultou na construção daquele relógio e são poucos, claro, que dão importância a pontualidade. Há muito por detrás do sucesso da selecção francesa que não está a ser citado na cacofonia que está a resultar do júbilo africano.
O êxito da França resultou de uma estratégia do desporto de muitos anos. Há muitas estruturas na França que jovens com talento podem brilhar muito cedo na vida. Também nas academias os jogadores passam a saber como melhor fundir o seu talento com estratégias avançadas do jogo. Temos visto manifestações súbitas e passageiras de brilho no futebol africano. Mesmo assim, os jogadores que brilham, em muitos casos, floresceram na Europa. Há uma gritante falta de estruturas locais no continente para a promoção do talento individual e também para afinar as máquinas de gestão que asseguram um futebol que vence.
As Federações de futebol, em muitos países africanos, manifestam a mesma debilidade que muitas instituições em países africanos. Algo que sempre lamentei é a desatenção ao futebol local, do bairro. Para muitos, com o surgimento da globalização, o futebol é o Chelsea, Manchester United, Juventus, Barcelona. Mas estas equipas são essencialmente empresas onde o marketing é a chave. No continente africano, chegou o momento de se ter equipas locais, que sobrevivem do pagamento de bilhetes.
No nosso Huambo, por exemplo, os campos de futebol continuam em estado degradado. O meu estádio local é o Benfica que, a última vez que estive lá, se tinha tornado em pequenos lagos onde as crianças iam nadar. Aparentemente, uma empresa tinha sido paga de milhões de dólares para reparar o estádio. Nada tinha sido feito. Há, nos bairros do Huambo, muitos Mbappés, Matuidis e Pogbas. Para estes poderem pegar no alto a copa do mundo, tem de haver uma estratégia que, infelizmente, não existe. Entretanto, o delírio africano continua!