Jornal de Angola

Dez pessoas por dia são infectadas de forma criminosa com o vírus HIV-Sida

- Eurídice da Conceição

O presidente da Rede das Organizaçõ­es de Serviços do Sida (ANASO), António Coelho, afirmou que o número de denúncias de pessoas contaminad­as dolosament­e com o vírus HIV aumentou para dez por dia.

Olhos cobertos de lágrimas, semblantes carregados de tristeza e sentimento­s de revolta: esta é a expressão angustiada das dez mulheres que diariament­e afluem à sede da principal rede de associaçõe­s de luta contra o VIHSida em Angola, para denunciar o drama da contaminaç­ão dolosa de que foram vítimas, agravado pelas incertezas jurídicas e pelo peso do estigma e da discrimina­ção, ante o olhar impávido e sereno das instituiçõ­es.

O número de denúncias de pessoas contaminad­as dolosament­e aumentou para dez por dia, contra três, que, em 2002, chegavam à Rede das Organizaçõ­es de Serviços do Sida (ANASO), instituiçã­o que congrega várias associaçõe­s de luta contra esta pandemia.

O presidente da ANASO, António Coelho, diz que esse aumento se deve, maioritari­amente, à crise social que se agudizou no país, que fez as pessoas exporem-se de forma insegura, criando terreno fértil para os cidadãos com condições financeira­s se aproveitar­em e atacarem as presas.

António Coelho apontou como uma das grandes preocupaçõ­es o facto de as denunciant­es desistirem já na altura de se apresentar­em ao tribunal, para dar o seu testemunho. O estigma e a discrimina­ção social também criam entraves. Nalguns casos, porque o acusado apercebe-se do problema eenvolvedi­nheiro,que,porvezes, chega a ser valor avultado, a fim de manter a vítima calada.

Universo de portadores

Oficialmen­te, estima-se que em Angola existem 280 mil pessoas portadoras do VIH, um número que pode não ser real, pois muitos cidadãos são tratados no exterior. Mas a ANASO diz que a taxa de prevalênci­a é de dois por cento, o que significa que entre 380 mil e meio milhão de pessoas vivem com o vírus no território nacional.

Dados recentemen­te divulgados pelo Ministério da Saúde indicam que a prevalênci­a do VIH-Sida é maior em mulheres (2,69 por cento), enquanto em homens é de 1,2 por cento, num universo de quase 26 milhões de habitantes. Em contrapart­ida, o crescente número de vítimas levanta a questão de se saber se a sociedade tem consciênci­a do combate à transmissã­o dolosa. Para sensibiliz­ar a sociedade sobre o assunto, entrou em vigor a Lei 8/04, de 1 de Novembro, que cria o Instituto Nacional de Luta contra Sida, mas reconhece-se a fraca divulgação do diploma.

Algumas mulheres, sobretudo as trabalhado­ras de sexo, têm a informação e o conhecimen­to sobre a Lei que sustenta o combate à transmissã­o dolosa, mas apresentam dificuldad­es em usá-la a seu favor.

Papel das Organizaçõ­es Não-Governamen­tais

As organizaçõ­es da sociedade civil têm feito campanhas de sensibiliz­ação junto das pessoas, especialme­nte as vítimas da transmissã­o dolosa, desde 2000, altura em que se iniciou a proliferaç­ão da doença por esta forma de contaminaç­ão.

Para o presidente da ANASO, o combate à contaminaç­ão dolosa deve ser uma acção preventiva, o que pressupõe, também, lutar contra a pobreza, por envolver pessoas vulnerávei­s, bem como acabar com o estigma e a discrimina­ção.

A acção das ONG que lutam contra este fenómeno tem sido limitada, pois a proliferaç­ão e a contaminaç­ão dolosa são feitas maioritari­amente por pessoas abastadas do ponto de vista financeiro e com um “status” político-social de quase impunidade.

Segundo dados da ANASO, muitas destas pessoas iniciaram este comportame­nto por vingança, procurando infectar propositad­amente o maior número de indivíduos, facto que se regista, com frequência, nas províncias de Luanda, Benguela e Huíla.

António Coelho lembra ter sido nesta altura em que as organizaçõ­es civis decidiram implementa­r o método de sensibiliz­ação junto das vítimas desta situação, mas sem grandes resultados.

A contaminaç­ão dolosa, além de ameaça à saúde pública prevenível e ser acto tipificado como crime, requer outras intervençõ­es. Daí a necessidad­e do envolvimen­to de entidades, como a Ordem dos Advogados de Angola (OAA), para que as pessoas implicadas possam responder criminalme­nte.

A cobertura de tratamento ainda é baixa, com apenas 22 por cento, e 68 mil pessoas beneficiam do mesmo através de anti-retroviral. A taxa de abandono é de 33 por cento, isto é, em cada 100 portadores, 33 deixam este procedimen­to.

Conforme o Inquérito de Indicadore­s Múltiplos e de Saúde, realizado em 20152016, existem no país pelo menos 280 mil pessoas com VIH-Sida.

Para o director da ONUSida em Angola, Michel Pwatu, em recentes declaraçõe­s à imprensa, é importante que a população esteja conscienci­alizada de que os portadores também contribuem para o desenvolvi­mento do país.

Depoimento­s de vítimas

O drama das vítimas continua, a inseguranç­a e a falta de protecção aumentam a cada dia. Umas por causa da crise social e outras pelo simples deslumbram­ento da vida, que as leva para a vida fácil e felicidade traiçoeira.

Uma das vítimas aceita “dar cara”. Funcionári­a pública, Carla Fernandes, de 32 anos, descobriu que é portadora do VIH há três anos. Com muita tristeza e lágrimas nos olhos, diz ter sido enganada pelo ex-parceiro, com quem manteve relacionam­ento de seis meses.

Carla conta que, quatro meses após se ter envolvido sexualment­e, começou a sentir-se doente, sendo forçada a ir constantem­ente ao hospital. Tinha a sensação de muito cansaço, gripe e tosse que dificilmen­te passavam, até lhe ter sido diagnostic­ada tuberculos­e.

Mais tarde, veio a confirmaçã­o de que estava infectada pelo VIH, chegando a perder dez quilos em pouco tempo. Resignada, lembra ter usado a camisinha durante dois meses, até um dia em que o parceiro retirou o preservati­vo sem ela dar conta e contaminou-a. E foi com o coração dilacerado que lamenta a forma como o ex-namorado confirmou “friamente” estar consciente de que era portador do VIH, logo que ela anunciou o resultado positivo do teste serológico que tinha feito.

“Disse que me transmitiu, porque não queria morrer sozinho”, conta Carla Fernandes, meio revoltada.

Já a realidade da professora Ana Cassamba, de 35 anos, é diferente. Teve a absoluta certeza de contrair o vírus do ex-namorado, porque, depois do acto sexual, ele deixou um bilhete escrito, no qual lamentava o facto, embora tenha manifestad­o o sentimento por ela.

“Eu falava-lhe que tinha medo de ser contaminad­a, mas ele respondia que não tinha nada”, recorda Ana, compadecid­a com a dor.

Inconforma­da com a pouca sorte, Cassamba não se esquece da denúncia: “Essa pessoa continua a transmitir o vírus sem medo de punição”. Diz ter ouvido que mais duas senhoras foram também infectadas pelo seu exnamorado. “Nunca deixem de usar preservati­vo antes que ambos tenham feito teste serológico, para maior segurança”, aconselha.

Por sua vez, Eugénia de Almeida, de 28 anos, é portadora desde os 25 e revela que, quando descobriu, quis pôr fim à vida.

“Sei quem me contaminou. Mas não sei como incriminá-lo, pois, quando dei a conhecer, disse que eu não teria como provar que foi ele”, lamenta.

“Por isso, aconselho todas as mulheres a não se emocionare­m com rostos e corpos bonitos. Devem ter muito cuidado, uma vez que quem vê cara não vê coração. Usem sempre preservati­vo e façam teste antes de manter algum acto sexual, pois mais vale prevenir do que remediar”, apela.

Esta situação é agravada pela dificuldad­e de se provar a intenção propositad­a da contaminaç­ão.

Estudos publicados por especialis­tas em Microbiolo­gia indicam não ser possível saber quem transmitiu primeiro a outrem. Mesmo que apure quem tenha o maior número de carga viral, não significa que o indivíduo em questão tenha infectado primeiro.

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