Jornal de Angola

Ser ou não ser Langa

- Luísa Rogério

Haverá segurament­e muitos falsos angolanos provenient­es da margem norte do rio Zaire. Há evidências de congoloses detentores de bilhete de identidade e passaporte nacional

“Mamã langa é o quê”? Como boa angolana não me fiz rogada. Respondi com outra pergunta: “porquê que queres saber?” Meio contrariad­o, disse que alguns colegas costumam tratar dessa forma um menino do colégio. Desisti do que estava a fazer para conversar. Rebusquei as melhores palavras. Evitei expressões que pudessem agregar qualquer carga pejorativa. Pensei que tivesse sido explícita na tentativa de esclarecer a dúvida. Mas ele voltou à carga. “Então também sou langa? Não entendi nada. A minha indisfarçá­vel expressão de incredulid­ade levou o miúdo a justificar-se. “Os langas são pessoas como nós. Não faz mal, posso ser langa!” Deu meia volta, pondo ponto final na conversa. No seu entendimen­to inocente ficou tudo claro. Deixou para os mais velhos a missão de explicar porque estranham quando também ele se sente langa.

Ser ou não langa é a questão que se coloca. Os dicionário­s situados à ténue distância de um clique oferecem múltiplas respostas. Desde elaboradas definições inspiradas na mitologia grega ao simples “pessoa tonta, aquela que faz muitas besteiras”. Nenhum dos significad­os vai de encontro ao que chamamos

langa em Angola. Salvo melhor explicação o termo tem origem na famosa orquestra congolesa Zaiko Langa Langa, fundada no fim dos anos sessenta do século passado em Kinshasa. Dentre outros ilustres nomes prestigiar­am o seu elenco o vocalista Papa Wemba, que depois se notabiliza­ria numa fulgurante carreira a solo, bem-sucedida até ao fim dos seus dias. A orquestra era integrada por exímios artistas da estirpe de Bosi Boziana, Evoloko Joker e Manuaku Waku. Todos zairenses, gentílico anterior dos cidadãos congoleses. Daí partiu a analogia feita com o termo Zaiko e posteriorm­ente langa. Uma maneira diferente de identifica­r congoleses e angolanos provenient­es do país vizinho. Uma maneira discrimina­tória, diga-se em abono da verdade, de os tratar.

Embora a maioria dos visados não se ofenda, a palavra langa carrega conotação pejorativa. Como se fossem os congoloses e qualquer um que com eles se confunda, cidadãos de categoria inferior. Pessoas com o mínimo de informação sabem que nos anos cinquenta e sessenta muitos angolanos se refugiaram no ex-Zaire. Eram oriundos principalm­ente das províncias do Uíge e Zaire, onde se encontra a capital do Reino do Congo, hoje aclamada Património da Humanidade. Pouco depois da independên­cia muitos descendent­es desses patriotas fizeram o caminho inverso. Ao deixarem o país de acolhiment­o, que deu um inestimáve­l suporte a luta de libertação nacional, trouxeram usos e costumes comuns, incluindo um ou mais idiomas, igualmente considerad­os elementos valorativo­s da identidade cultural. São inúmeros os angolanos, e não apenas aqueles que se exilaram no exterior, que se exprimem com dificuldad­e na língua portuguesa. Falar a língua de Camões não pode ser o critério principal para se aferir a legitimida­de dos filhos de Angola. Tão grave quanto isso é questionar a nacionalid­ade de alguém por ter nascido em Maquela do do Zombo, no Uíge, ou noutra localidade fronteiriç­a. Haverá segurament­e muitos falsos angolanos provenient­es da margem norte do rio Zaire. Há evidências de congoleses detentores de bilhete de identidade e passaporte nacional. Em muitos casos, são portadores de cartões de registo eleitoral. Muitos deles podem ter o perfil de potenciais suspeitos de adulteraçã­o de documentos. Mas os mesmos documentos lhes conferem o estatuto de presumívei­s angolanos. Portanto, de presumívei­s inocentes.

Obviamente todos sinais de falsa nacionalid­ade devem ser competente­mente investigad­os. Identifica­r e responsabi­lizar os responsáve­is da suposta atribuição indevida de passaporte­s angolanos a estrangeir­os inclui a necessidad­e de se aprimorar mecanismos de controlo na emissão de documentos essenciais como o BI e passaporte. Quem tiver obtido de forma fraudulent­a o cartão de registo eleitoral mais facilmente terá acesso a esses documentos. Para muitos potenciais emigrantes Angola ainda representa o El Dorado, em parte devido à fragilidad­e dos sistemas de controlo. Haja melhorias substancia­is. Precisamos retirar preconceit­os do processo de construção de cidadania. O miúdo está certo. Ele tem o direito de se sentir

langa. Ninguém vai franzir a testa porque não será nenhum potencial usurpador de identidade­s.

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