Ser ou não ser Langa
Haverá seguramente muitos falsos angolanos provenientes da margem norte do rio Zaire. Há evidências de congoloses detentores de bilhete de identidade e passaporte nacional
“Mamã langa é o quê”? Como boa angolana não me fiz rogada. Respondi com outra pergunta: “porquê que queres saber?” Meio contrariado, disse que alguns colegas costumam tratar dessa forma um menino do colégio. Desisti do que estava a fazer para conversar. Rebusquei as melhores palavras. Evitei expressões que pudessem agregar qualquer carga pejorativa. Pensei que tivesse sido explícita na tentativa de esclarecer a dúvida. Mas ele voltou à carga. “Então também sou langa? Não entendi nada. A minha indisfarçável expressão de incredulidade levou o miúdo a justificar-se. “Os langas são pessoas como nós. Não faz mal, posso ser langa!” Deu meia volta, pondo ponto final na conversa. No seu entendimento inocente ficou tudo claro. Deixou para os mais velhos a missão de explicar porque estranham quando também ele se sente langa.
Ser ou não langa é a questão que se coloca. Os dicionários situados à ténue distância de um clique oferecem múltiplas respostas. Desde elaboradas definições inspiradas na mitologia grega ao simples “pessoa tonta, aquela que faz muitas besteiras”. Nenhum dos significados vai de encontro ao que chamamos
langa em Angola. Salvo melhor explicação o termo tem origem na famosa orquestra congolesa Zaiko Langa Langa, fundada no fim dos anos sessenta do século passado em Kinshasa. Dentre outros ilustres nomes prestigiaram o seu elenco o vocalista Papa Wemba, que depois se notabilizaria numa fulgurante carreira a solo, bem-sucedida até ao fim dos seus dias. A orquestra era integrada por exímios artistas da estirpe de Bosi Boziana, Evoloko Joker e Manuaku Waku. Todos zairenses, gentílico anterior dos cidadãos congoleses. Daí partiu a analogia feita com o termo Zaiko e posteriormente langa. Uma maneira diferente de identificar congoleses e angolanos provenientes do país vizinho. Uma maneira discriminatória, diga-se em abono da verdade, de os tratar.
Embora a maioria dos visados não se ofenda, a palavra langa carrega conotação pejorativa. Como se fossem os congoloses e qualquer um que com eles se confunda, cidadãos de categoria inferior. Pessoas com o mínimo de informação sabem que nos anos cinquenta e sessenta muitos angolanos se refugiaram no ex-Zaire. Eram oriundos principalmente das províncias do Uíge e Zaire, onde se encontra a capital do Reino do Congo, hoje aclamada Património da Humanidade. Pouco depois da independência muitos descendentes desses patriotas fizeram o caminho inverso. Ao deixarem o país de acolhimento, que deu um inestimável suporte a luta de libertação nacional, trouxeram usos e costumes comuns, incluindo um ou mais idiomas, igualmente considerados elementos valorativos da identidade cultural. São inúmeros os angolanos, e não apenas aqueles que se exilaram no exterior, que se exprimem com dificuldade na língua portuguesa. Falar a língua de Camões não pode ser o critério principal para se aferir a legitimidade dos filhos de Angola. Tão grave quanto isso é questionar a nacionalidade de alguém por ter nascido em Maquela do do Zombo, no Uíge, ou noutra localidade fronteiriça. Haverá seguramente muitos falsos angolanos provenientes da margem norte do rio Zaire. Há evidências de congoleses detentores de bilhete de identidade e passaporte nacional. Em muitos casos, são portadores de cartões de registo eleitoral. Muitos deles podem ter o perfil de potenciais suspeitos de adulteração de documentos. Mas os mesmos documentos lhes conferem o estatuto de presumíveis angolanos. Portanto, de presumíveis inocentes.
Obviamente todos sinais de falsa nacionalidade devem ser competentemente investigados. Identificar e responsabilizar os responsáveis da suposta atribuição indevida de passaportes angolanos a estrangeiros inclui a necessidade de se aprimorar mecanismos de controlo na emissão de documentos essenciais como o BI e passaporte. Quem tiver obtido de forma fraudulenta o cartão de registo eleitoral mais facilmente terá acesso a esses documentos. Para muitos potenciais emigrantes Angola ainda representa o El Dorado, em parte devido à fragilidade dos sistemas de controlo. Haja melhorias substanciais. Precisamos retirar preconceitos do processo de construção de cidadania. O miúdo está certo. Ele tem o direito de se sentir
langa. Ninguém vai franzir a testa porque não será nenhum potencial usurpador de identidades.