A tragédia dos Camarões
Já vi muita coisa na minha vida, mas a gravação de soldados do exército dos Camarões a torturar civis na região anglófona do país superou tudo. Enquanto uns soldados torturavam, outros filmavam com os seus celulares. Há uma insurreição na parte anglófona dos Camarões que está a ser enfrentada com uma brutalidade que repugna. Sim, os rebeldes não são santos nenhuns; porém, espera-se de um exército com generais vindos de academias mais avaliação e prudência. O tribunal de crimes contra a humanidade vai mesmo ter que actuar.
Muitos dos comentários de gente que viu a gravação dizem que aquele comportamento bárbaro é típico dos africanos. Não concordo com esta visão estereotipada dos africanos: qualquer exército pode cometer crimes na ausência de sistemas disciplinares. Há um inquérito nas Nações Unidas sobre as ofensas sexuais de muitos capacetes azuis e nem todos são africanos.
Voltemos, porém, à guerra civil cruel nos Camarões e a indiferença do resto do continente africano perante este derramamento de sangue que é cada vez mais vergonhoso. Os Camarões foram uma colónia alemã que, depois da Segunda Guerra Mundial, passou a ser um protectorado da França e do Reino Unido. Na altura da independência, em 1960, decidiu-se que o novo país seria uma federação; em 1970, este arranjo terminou e criou-se um Estado unitário.
O Presidente dos Camarões Paul Biya, que ascendeu ao poder em 1982 (ele é o segundo Presidente com mais anos no poder, o primeiro é Obiang Nguema da Guiné Equatorial) decidiu que iria esmagar a oposição, que inclui certos separatistas, usando o exército. Para ele, os que reivindicam os direitos nos Camarões são terroristas, como os Boko Haram, da Nigéria. Só que os seus militares foram saqueando, torturando, violando e maltratando a população sem qualquer impedimento; os homens da região fugiram para as matas e as mulheres e crianças para os campos de refugiados. Há vários grupos armados que reclamam ser os verdadeiros lutadores pela independência da Amazônia, como os separatistas chamam a região.
Muitos analistas estão de acordo que poderemos ver uma verdadeira tragédia no Sul dos Camarões. Neste desespero, muitos estão a chamar a atenção de quem pode verdadeiramente fazer uma diferença: a França. Emannuel Macron, que era um rapazinho quando Biya já estava no poder, está a ser citado como a solução para o problema dos Camarões. Ninguém, infelizmente, parece estar interessado em lidar com as questões de fundo.
Os Camarões de Paul Biya passaram a ser um país altamente centralizado: o Presidente nomeia todos! Os governadores das regiões são nomeados pelo Presidente Biya; nas pequenas vilas há os chefes da câmara mas também há o dito delegado do Estado que usualmente faz parte do circuito do Presidente. Embora haja o princípio da diversificação, na realidade o sistema de governação nos Camarões passou a ser dominado por pessoas com os mesmos traços sociológicos que o Presidente Paul Biya. O resultado foi uma alienação profunda das elites das outras regiões. Muitos jovens da região anglófona dos Camarões emigraram para os países vizinhos ou então para o Ocidente. Os próximos de Biya insistem que a rebelião no território anglófono está a ser financiado pela diáspora. Isto é verdade e só pode ser invertido através do diálogo.
Há milhares de Camaroneses nos Estados Unidos, vindos da região Anglófona e que participam activamente nos afazeres da sua terra natal. Em vez de se aproximarem a esta diáspora, e explorar formas de como criar sinergias com ela, Paul Biya e os seus próximos optaram por uma retórica que faz pouco caso das inquietações dos seus adversários. Até recentemente, Biya e os seus próximos excluíam a possibilidade de qualquer diálogo. Só que assim que a guerra vai escalando também surge a possibilidade de uma intervenção internacional – e o Presidente Biya e os seus próximos não querem nada disto, porque a presença de outras forças poderá romper com as redes de patrocínio que sustenta o regime. A região anglófona dos Camarões tem muitos recursos naturais, que estão a ser explorados por empresários que, como era de esperar, fazem parte da família do Presidente Paul Biya. Qualquer acordo sobre um arranjo politico daria muita importância à transparência e probidade; outras forças passariam a ter um assento na mesa grande sem necessariamente precisar da bênção do Presidente Biya.
Nisto tudo, a ausência da União Africana está a ser notória. Os americanos, franceses, britânicos estão muito preocupados com a situação nos Camarões. Não se ouve mesmo nada da União Africana. Mesmo as diversas organizações que, supostamente, vão promovendo a cooperação regional (Organização de Cooperação Económica de Países da África Ocidental; Organização da comunidade económica de Países da África Central, etc.) não estão a dizer nada. Parece que todo o mundo está à espera da intervenção francesa. E depois, claro, o continente se vai queixar do neocolonialismo!
Os Camarões foram uma colónia alemã que, depois da Segunda Guerra Mundial, passou a ser um protectorado da França e do Reino Unido