Justiça em actos distintos
Luanda, 30 de Julho de 2018. A condenação de uma cidadã por agressão a dois agentes de fiscalização quando estes procediam à remoção da sua viatura, indevidamente estacionada numa passadeira, está entre as manchetes do dia. A mulher foi condenada pelo Tribunal de Luanda que converteu a pena de cinco meses de prisão em multa. Quem acompanhou a matéria apercebeuse de que a ré, submetida a julgamento sumário, disse ter parado o automóvel por alguns instantes enquanto se dirigiu a uma loja. Nessa altura foi alertada da presença dos fiscais no local. O nervosismo que alegou sentir, por estar na hora de ir à busca dos filhos à escola, não justificou a reacção patente no vídeo amplamente partilhado nas redes sociais.
A imagem da mulher enfurecida a agarrar o agente de autoridade, a quem teria agredido fisicamente, é expressiva. A acusação entende que a banalização do trabalho dos fiscais carrega o risco da construção de um país onde não se respeita nenhuma norma. E pediu que a ré fosse condenada exemplarmente devido aos danos voluntários.
A pena única de cinco meses foi convertida em multa com o pagamento de valores fixados no acto, além das taxas de justiça, emolumentos e indemnização ao ofendido no valor de duzentos mil kwanzas. A ré deve também reparar os danos causados aos “meios do Governo”, assim denominado o colete, avaliado em sete mil 645 kwanzas.
Sem entrar no mérito da questão, obviamente por incapacidade técnica para avaliar a decisão, mas sobretudo por não estar em causa a condenação, integro a legião que acredita no recurso aos tribunais para reparação de danos. Aliás, o chefe de departamento de Fiscalização e Inspecção da Comissão Administrativa de Luanda, José Gaspar, afirmou à imprensa que se fez justiça. Ainda assim, considerou que uma punição exemplar seria a pena de prisão efectiva para se acautelar “situações futuras”. É frequente e recorrente, daí a necessidade de ser por termo a situação porque amanhã pode ser homicídio, conforme alerta José Gaspar. Muito bem! De resto, não custa ao cidadão de boa-fé reconhecer que qualquer país minimamente organizado rege-se por regras de cumprimento obrigatório para todos. Os agentes de autoridade, tal como a designação descreve, são imbuídos de poderes conferidos ao abrigo da legislação em vigor no país. Devem ser respeitados. Não dignifica a ninguém, nem ao próprio país, agredi-los em pleno exercício de funções. No caso do fiscal fez-se justiça. Olhemos então para o inverso da questão. Olhemos, por exemplo, para os casos em que o cidadão se confronta com a viatura removida de um local público, mesmo sem haver qualquer placa indicativa de proibição ou outro sinal claro de possível transgressão. Equívocos do género vêm acontecendo também com alguma frequência. Geralmente ao utente do carro removido resta dar muitas voltas, deslocar-se ao local e pagar a multa. De nada serve argumentar e provar seja o que for.
Não é tudo. A forma vilipendiosa escolhida por muitos fiscais para tratar zungueiras é de bradar aos céus. Que atire a primeira pedra quem nunca se deparou com injustiças do género. As mesmas redes sociais que mostram o vídeo de fiscal agredido estão inundadas de evidências de zungueiras, kínguilas e afins agredidas com violência desproporcional. Alguém se lembra do vídeo em que um menor se atirou ao chão para impedir que os fiscais destruíssem pela enésima vez o negócio da mãe? Quem nunca ouviu falar de mulheres grávidas agredidas por fiscais? Ou da vendedora mortalmente atropelada ao tentar fugir de agentes da Polícia?
A manutenção da ordem pública não devia contemplar acções que configuram crimes para os quais se dispensam denúncias. Acontecem em Luanda aos olhos do público. A resposta frequente e recorrente tem sido a impunidade para os infractores e o descaso por parte das instituições que têm a obrigação de proteger a vida humana. Às vezes é preciso recordar que todos nascemos iguais. Não se pode falar em hierarquização sob o risco de ferirmos o elementar direito à vida plasmado na Constituição da República de Angola. Para a aplicação incondicional da justiça urge tirar a venda dos olhos. E equilibrar a balança- Ver o que não vai bem é recomendável na hora de corrigir o que sempre esteve mal.
A forma vilipendiosa escolhida por muitos fiscais para tratar zungueiras é de bradar aos céus. Que atire a primeira pedra quem nunca se deparou com injustiças do género.