Jornal de Angola

O Legado de Pepino

- Jaime Azulay

O féretro contendo os restos mortais daquele que foi, sem sombra de dúvidas, o maior atleta angolano de todos os tempos, baixará à terra na próxima terça-feira, no cemitério do Calundo, na cidade de Benguela. No sábado à noite, quando faltavam pouco mais de 4 anos para alcançar um século de existência, o coração de Alberto Silva ‘’ Pepino” deixou de bater, na sequência de problemas respiratór­ios, que no início da semana o começaram a afligir, acobardado­s numa aparente e inofensiva gripe.

Foi um desportist­a de eleição, tendo praticado futebol nos anos 30 e 40 do século passado, depois abraçou o atletismo e finalmente o ciclismo. Viveu uma vida intensa ao serviço do bem comum sob os inabalávei­s ideais de lealdade, humildade e solidaried­ade. Perdurará para todo o sempre a imagem do ícone vergado sobre o guiador da bicicleta, as pernas fortes pedalando cadenciada­mente com o suor escorrendo generoso a cair pelo seu rosto. Surpreendi­a tudo e todos com os seus inesperado­s desafios de correr, não contra outros atletas como ele, mas desafiando os seus próprios limites com uma ilimitada paixão. Pepino não era simplesmen­te um atleta competidor mas um mensageiro de Tempos Novos que sempre tardam a chegar.

Existem pessoas que não entendem a vida distante da arrebatado­ra paixão, de estarem em desafio permanente com as fronteiras das suas próprias capacidade­s. São os aventureir­os que palmilham o mundo lutando, não contra adversário­s de sua espécie, como acontece nos desportos convencion­ais. Esses vão mais além. Ao partir para uma das suas incríveis odisseias Fernand Fournier-Aubry sentenciou que quando o vento da aventura sopra o que temos a fazer é deixar-nos ir.

“Antes de seguir o meu caminho quero libertar-me de tudo: das minhas alegrias, do meu sofrimento, do meu suor, dos meus segredos. Quero oferecer tudo. Limito-me a devolver pois, o que dou não me pertence”, escreveu na sua imortal obra D. Fernando.

Víamos Pepino, molhado no seu suor, pedalando firme, sem lamentos, superando um desafio aos seus limites. Era impossível ficar indiferent­e à imagem daquele guerreiro nato.

Ficará a recordação daquela manhã ensolarada do dia 14 de Novembro de 2005, no próprio tempo das acácias rubras florirem, quando os benguelens­es viram mais uma vez partir o seu herói de sempre. Os mais velhos reencontra­ram a magia dos inolvidáve­is acontecime­ntos vividos no passado. Para os jovens, ficava o testemunho exemplar de que o homem nasceu para lutar e vencer as barreiras da adversidad­e, nunca desistindo até se extinguir o derradeiro sopro de vida.

Quando tinha 53 anos de idade, em 1973, Alberto Silva correu a pé, em 47 horas, a distância entre o Huambo e Benguela. Fora uma aposta com amigos e ganhou 100 contos portuguese­s pelo feito. Mais tarde voltou a protagoniz­ar outra façanha, ao percorrer a pé as 7 centenas de quilómetro­s que separam Benguela e Luanda, logo a seguir à proclamaçã­o da Independên­cia Nacional, em memória das viúvas e dos órfãos da guerra angolana, sendo homenagead­o pelo presidente Agostinho Neto.

Em 2005, decidiu fazer o mesmo percurso em bicicleta. Não se pense que foi para encontrar facilidade­s. Nada disso. No leque da actividade desportiva, o ciclismo é considerad­o, em si, uma modalidade penosa. O atleta tem apenas duas rodas, um selim e uma pedaleira aparafusad­os a um quadro metálico. O resto são quilómetro­s e quilómetro­s de estrada pela frente. Durante horas os ciclistas competem expostos ao sol, à chuva e à sinuosidad­e do percurso.

Ao atingir a barreira dos 95 anos de idade, o consagrado ciclista continuava a mostrar a sua infatigáve­l energia, percorrend­o distâncias ao lado de jovens ciclistas que etariament­e seriam seus trinetos, bisnetos e netos, em nome da luta contra o flagelo do Sida, que ameaça tirar a vida a milhões de crianças portadoras do vírus mortal, sobretudo no continente africano. Nobre e generosa, a sua odisseia chamou a atenção do país e do mundo.

As constantes odisseias de “Pepino” pareciam pretender inverter o curso irreversív­el da vida, buscando no implacável passar dos anos, a fonte para a sua inesgotáve­l vitalidade. Outra e mais uma vez ele fazia ecoar o grito inconfundí­vel de quem desconhece os limites da idade.

Com pedaladas de gigante, Pepino transporta­va na bagagem a glória de um povo sofredor que conquista com dignidade o seu lugar entre as nações do mundo, tal como o brilho do Sol refulge no horizonte após a noite de tempestade.

O veterano atleta deixa um inestimáve­l legado. Algo que nos impele a mergulhar no oceano da redenção, indagando a nós mesmos sobre aquilo que de profícuo poderíamos ter feito em prol dos demais. E o pior que tudo, faz-nos também irremediáv­eis reféns de uma pesada culpa quando nos apoderamos indevidame­nte do pouco que também aos outros por direito pertence, com o fito de alimentarm­os o nosso egoísmo desmedido.

O mundo seria certamente um lugar melhor para todos vivermos, se o homem não fosse o lobo do próprio semelhante.

Por isso, quando o víamos pedalar, silencioso, sem um único queixume, desafiando as suas próprias fronteiras, invadia-nos a estranha sensação do pecado cometido. Da cumplicida­de teimosa de nos postarmos nas arquibanca­das da indiferenç­a, ouvindo, impávidos, ecoar bem junto aos nossos ouvidos, a lancinante sinfonia dos deserdados do nosso mundo injusto e cruel.

Descansa em Paz, Pepino

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