Jornal de Angola

As nossas favelas

- Adebayo Vunge

O Brasil é um país de grandes disparidad­es. É uma das maiores economias do mundo, mas ao mesmo tempo tornou-se num dos lugares com maiores índices de desigualda­de social entre pobres e ricos. É o país do samba, Machado de Assis, Pelé, Ayrton Sena, Óscar Niemayer e Lula da Silva, para citar apenas estes. É um país industrial­izado, com uma potente produção agrícola e pecuária e de belezas naturais inigualáve­is, com quedas de água lindas, rios e florestas enormes como o Amazonas, que alguns consideram o pulmão do planeta.

Mas o fenómeno da desigualda­de social no Brasil não é um fenómeno recente. Remonta ao século XIX, com o nascimento das favelas e hoje o seu corolário é a alta violência que se assiste no país, em parte devido à impunidade que se instalou e os altos níveis de corrupção das elites políticas e empresaria­is.

Nos finais do século XIX, a propósito do êxito da guerra de canudos (1896-1897), uma rebelião de escravos na zona da Baía, o governo não cumpriu na entrega dos soldos e os soldados enfurecido­s ocuparam terrenos num morro. Outros dizem que os terrenos foram-lhes concedidos. De qualquer modo, foi assim a história da primeira “favela” do Brasil, favela do morro da providênci­a, no centro do Rio de Janeiro. Mas o termo favela vem do nome de uma árvore muito comum da Baía, onde estes soldados combateram. Possui espinhos e flores brancas, com uma semente muito semelhante às favas e daí que na região fosse chamada de favela ou faveleiro.

Ora, depois o nome foi adoptado ao morro da favela e alguns anos depois deu-se um outro fenómeno interessan­te: Um certo governador do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, lançou um programa que ficou conhecido como “bota abaixo”, que se traduzia na demolição de algumas moradias que se encontrava­m em zonas onde se pretendiam edificar ruas e avenidas. A população pobre, geralmente ex-escravos, que morava nestas residência­s, estabelece­u-se no morro da favela e nos morros mais próximos, criando assim as novas favelas na cidade do Rio de Janeiro. Nos anos 1920, os outros bairros pobres também passaram a ser conhecidos como favelas e em toda essa história é notória uma falha das políticas públicas.

O que aconteceu no Rio de Janeiro espalhou-se muito rapidament­e para outros Estados brasileiro­s como São Paulo, Minas Gerais e Salvador. Até a nova Brasília não escapou. Desde o seu nascimento, estes bairros estiveram embrenhado­s em violência, exclusão, discrimina­ção e pobreza. A situação brasileira ora conhece avanços no sentido da melhoria das condições de vida dessa população – segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­as (IBGE), o equivalent­e do nosso INE, estima que menos de 10% da população vive nestes aglomerado­s – como sucedeu durante os governos de Lula da Silva, ora recuos como o que se vê na actualidad­e.

Numa altura em que se avizinham eleições presidenci­ais no Brasil, surgem também muitas estatístic­as sobre os níveis de violência, dificuldad­e do Estado (incapacida­de/falência (?) na visão do politólogo Steven Levitsky no seu livro “Como as democracia­s morrem”, com co-autoria com Daniel Ziblat) em fazer face ao que se assiste com o medo a dominar o modo de estar das pessoas. Todos os dias são dezenas de pessoas que morrem, sendo o número mais preocupant­e entre grupos como mulheres, negros e jovens.

Não há esperanças de que o resultado das eleições presidenci­ais em Outubro próximo venha a reverter o quadro, por si só, mas a verdade é que a crise política e o extremar das posições político-ideológica­s entre os principais partidos, com agenda única do poder por si mesmo, agudizou o problema e deixa espaço para os “caras” dominarem a cena nas comunidade­s. O novo nome das favelas.

Mas o que se passa no Brasil não pode ser visto de forma isolada e apaixonada. A realidade da violência e do boom das favelas tem de servir de lição para todos. No sentido do que se deve evitar. O Brasil é um caso flagrante das contradiçõ­es e da falência de certas políticas públicas, mais do que isso, do quanto a conduta dos políticos pode contribuir para a destruição de um País, não obstante o seu potencial.

Convenhamo­s, a realidade do Brasil é muito comum em outros países da América Latina como o México e a Colômbia, onde a violência é assustador­a e a corrupção nas instituiçõ­es públicas um cancro que mina o seu desenvolvi­mento, apesar de todo o potencial ai existente.

Essa realidade da América Latina tem de servir de lição para nós em diferentes prismas:

Em primeiro lugar, está o fenómeno dos bairros de lata. Segundo as Nações Unidas, cerca de 900 milhões de habitantes do planeta vivem nestas precárias condições, especialme­nte em África e na América Latina. Os asiáticos têm vindo a promover uma melhoria das condições de vida sem precedente­s. A China é a maior referência, mas a Índia começa agora a caminhar igualmente nesta direcção. Nós não podemos continuar a permitir-nos assistir ao nascimento de bairros de lata. Veja-se o que está a acontecer na nova entrada do Kilamba, para não falarmos de outros bairros que surgiram nos últimos anos na periferia de todas as cidades. O nosso boom demográfic­o tem de ser acompanhad­o de um esforço maior de urbanizaçã­o e melhoria das condições de organizaçã­o territoria­l no meio-rural. É da política da população que precisamos de prestar grande atenção, sob pena de compromete­rmos outros esforços em termos económicos e sociais.

Em segundo lugar vem o combate à corrupção e todas as suas manifestaç­ões, criando-se assim uma maior responsabi­lização e equidade social. Vivemos o dilema entre “o ano zero”, do corte com as práticas antiquadas e as garantias de um verdadeiro Estado democrátic­o de Direito, onde os poderes do Estado consigam actuar de modo independen­te, em especial o poder legislativ­o e o poder judicial. Precisamos combater a impunidade contra todos, o mínimo e o máximo. Os ladrões de galinhas e os de colarinho branco.

Enfim, devemos rever o nosso contrato social, nosso modelo de sociedade que combata a violência e todas as formas de descrimina­ção. As favelas não se reduzem ao monte de casas desordenad­as. As favelas traduzem o modo de (des)organizaçã­o social, que outras sociedades corrigiram e muitas evitaram. Ninguém jamais poderá colocar em causa a autoridade do Estado sob pena de recuarmos no nosso estágio civilizaci­onal. A instituiçã­o Estado tem de ser forte, credível, exemplar e com autoridade. A palavra chave é uma só: educação. A educação libertador­a e transforma­dora onde as pessoas tenham discernime­nto crítico sobre si mesmos, sobre os outros e sobre a sociedade. Dando e recebendo. Exigindo e concedendo. Percebendo que onde há direitos há antes deveres.

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FRANCISCO BERNARDO | EDIÇÕES NOVEMBRO
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