Menino perdido de Mpinda já está formado em Direito
Sem saber dos pais, Daniel Filipe foi enviado do município do Soyo em guerra para a província de Cabinda mas nunca abandonou os estudos e hoje é licenciado em Direito e docente
Daniel Maurício Filipe nasceu em 1980 no Mpinda, Missão Católica de Santo António do Zaire-Mpinda, nos arredores do município do Soyo, província do Zaire. Filho de André Maria Filipe e de Fernanda Maurício Helena.
Primogénito dos seis irmãos, Daniel Maurício Filipe fez a instrução primária na Escola 43 de Mpinda, em 1991 novamente Escola Missionária de Santo António do Zaire. Devido à guerra resultante da crise pós-eleitoral de 1992, não pôde dar seguimento aos estudos, pois a cidade do Soyo estava debaixo de uma artilharia pesada e acabou por ser tomada pelas forças beligerantes da Unita.
Em Março de 1993, a Unita toma o controlo da administração do Soyo até Novembro de 1994. Nesse período, Daniel Maurício Filipe perdeu dez familiares de sangue, no campo petrolífero do Pângala.
Na sequência dos confrontos, a alimentação escasseava em muitas casas, incluindo a de Daniel Maurício Filipe.
Certo dia, com 13 anos, ao regressar do lago Nvuembanga, a dois quilómetros do bairro, onde fora pescar makwanzacacusso, foi surpreendido com o desaparecimento de toda a família. De seguida apareceu um grupo de militares do recémcriado Exército único que o levaram para o embarcadouro da Marinha de Guerra e o colocaram numa lancha rumo a Cabinda. Chegado lá, foi transportado para o Morro do Tchizo, onde estavam estacionadas tropas idas do Soyo e entregue aos cuidados do pároco da Igreja da Imaculada Conceição, a Sé de Cabinda.
Domingas José Isabel, uma senhora do agrupamento apostólico Fraternidade, nascida no Mpinda, olhou para Daniel Maurício Filipe e reconheceu-o, pois era amiga de mocidade da mãe, e levou-o para a sua casa no Bairro Comandante Gika, entregando-lhe uma pilha de livros infantis. “Com este gesto comecei a sentir o nascimento de uma luz, fazia cópias dos textos, era obrigado a ler em voz alta sozinho no quarto todos os dias para reformar a minha expressão oral, marcadamente influenciada na altura pela minha língua materna, o kisolongo.”
Aberto o ano lectivo de 1994 e por não ter os documentos da frequência da quarta classe, teve de a repetir na Escola Comandante Dangereux no Bairro Primeiro de Maio, e no ano seguinte foi matriculado na quinta classe na Escola do Luvassa no Bairro da Uneca, abortado a meio pois, com a normalização da situação político-militar no Soyo, a mãe foi a Cabinda e levou-o de volta para Mpinda.
Daniel Maurício Filipe foi mais uma vez matriculado na quinta classe na antiga Escola Secundária do Soyo, Escola Ciclo, onde ficou desde 1996 até 1999, tendo de percorrer todos os dias 28 quilómetros a pé. A mãe, para comprar material escolar, roupas, chinelas e ténis para Daniel Maurício Filipe e os irmãos frequentarem a escola vendia mandioca demolhada, quizaca, carvão e dendém no mercado municipal ou na pracinha dos domingos no Rancho das Mangueiras da Missão do Mpinda. Dona Fernanda Maurício Helena, iletrada e separada do marido desde muito cedo, fazia o duplo papel de pai e mãe e consentiu todos os sacrifícios da vida para ver os filhos formados.
Em 1999, com o beneplácito do padre Malaquias Justina André, foi enviado para o Seminário Diocesano Santos Mártires do Uganda adstrito à Diocese de Ndalatando. “Foi uma vitória para mim pois os estudos no Seminário e outras casas de formação tuteladas pela Madre Igreja não são para indivíduos com ranho no cérebro.” No final do estágio canónico, em 2004, toma a decisão de sair do Seminário, acto que não agradou ao Bispo da Diocese de Mbanza Kongo, na altura Dom Serafim Shingo Ya Hombo, que lhe disse: “Daniel Maurício, meu filho, não seja ingrato com a Igreja.” De novo no Soyo, e aberto o concurso público em 2005 na Educação, Daniel Maurício Filipe concorreu e foi apurado. Como não tinha nenhum curso de agregação pedagógica, foi a Luanda enoInstitutoNacionaldeFormaçãodeQuadros, adstrito ao Ministério da Educação, recebeu as valências necessárias que a profissão exige.
Três anos depois viaja para Luanda e matricula-se na Faculdade de Direito da Universidade Independente de Angola, no período pós-laboral, interrompe por motivos graves de saúde mas em 2015 retoma a frequência do quarto ano de Direito e termina um ano mais tarde.
Quantas vezes Daniel Maurício Filipe passou fome para comprar livros? Quantas vezes não pagou a renda de casa para pagar a sua propina e a do irmão na Universidade?
Na actual Escola do Magistério do Soyo, Daniel Maurício Filipe lecciona Língua Portuguesa nas décimas primeiras classes mas o seu sonho é conseguir vaga para uma pós-graduação ou mestrado em Direito Administrativo ou Direito Constitucional e Ciências Políticas.
A par do ensino, Daniel Maurício Filipe é comentador da Emissora Regional do Soyo da Radiodifusão Nacional de Angola, no programa “Tarde Mais” e “Expresso da Manhã”.
Daniel Maurício passou fome para pagar os estudos e comprar livros mas nunca desistiu do seu objectivo