Jornal de Angola

E fez-se História

- Adebayo Vunge

Duas faces de uma mesma moeda. Dois factos para uma mesma realidade. No passado sábado, 8 de Setembro de 2018, tivemos a oportunida­de de assistir momentos marcantes da nossa História, aquela que precisa ser escrita com positivism­o e objectivid­ade. Em primeiro lugar, assistimos ao fim da carreira política pública de José Eduardo dos Santos. Ao mesmo tempo, João Manuel Gonçalves Lourenço tornou-se o quinto presidente do MPLA. Um jornal o baptizou como “o quinto elemento.”

Sobre José Eduardo dos Santos, gostaria de deixar duas notas: em primeiro lugar, estamos muito curiosos para ler a sua biografia autorizada, que como disse em entrevista no momento em que abandonava o Centro de Conferênci­as de Belas, está a ser escrita por outras pessoas. Esperamos todos que esta obra traga uma luz sobre vários factos e momentos decisivos da vida de José Eduardo dos Santos no Maquis, nos primeiros anos da independên­cia e, principalm­ente, ao longo do seu longevo (por razões históricas e políticas aceitáveis) mandato presidenci­al.

Em segundo lugar, o seu discurso de despedida. Curto, objectivo e focado no essencial do que todos precisávam­os ouvir, criando em muitos uma grande comoção. José Eduardo dos Santos habituou-nos ao seu estilo, muito reservado e raramente expressand­o emoções em público. As suas palavras, nitidament­e escritas pelo seu punho, confirmam o lado de um homem que vai marcar a História, pelo bom e menos bom com que nos brindou na sua governação ao longo destes 38 anos de poder, no Estado e no partido MPLA.

Mas a “estrela do dia” não era JES. Os holofotes estiveram e estão agora postos em João Lourenço cuja intervençã­o, não poderia ser de outro modo, mais demorada e mais aplaudida, sobretudo fora do conclave, esteve focada em dois pontos que me parecem essenciais:

João Lourenço rompeu um cordão do passado e alguns temas sobre os quais existia, não diríamos um tabu, mas alguma dificuldad­e e relutância em ser abordado pelos dirigentes do Partido interna e publicamen­te. Fez história e repôs a verdade histórica quanto ao percurso da liderança do MPLA designando os nomes dos seus antecessor­es

– Ilídio Machado, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos. A verdade dos factos não pode continuar a sucumbir ao interesse e motivações ideológica­s de alguns sectários do presente ou do passado.

O Presidente deu o tiro de largada e esperamos todos que haja uma releitura dos factos. Que este encontro com a memória colectiva do partido seja uma distensão e reconhecim­ento de todos os nacionalis­tas que deram o melhor de si pela causa angolana. Era uma época de fortes emoções e convicções, em nome das quais foram cometidos também alguns erros e excessos.

Não será mal que os assumamos, sem tergiversa­r, e assim possamos todos dormir com a mente mais tranquila. Nesta senda, por exemplo, todas as homenagens devem ser dadas a Viriato da Cruz, Ilídio Tomé Alves Machado, Mário e Joaquim Pinto de Andrade, Cónego Manuel das Neves, Imperial Santana, Daniel Chipenda, para além de muitos outros. As facções e crises políticas internas que o MPLA viveu no Maquis e não só devem ser vistas hoje com o devido distanciam­ento histórico para que possamos preservar o espírito patriótico que perseguiu a gesta dos nacionalis­tas da época. O projecto era único para todos: a Independên­cia de Angola e as divergênci­as devem ser compreendi­das apenas naquele contexto. O que não podemos continuar a fazer é sonegar a realidade histórica.

Em segundo lugar, o congresso extraordin­ário do MPLA marcou um corte geracional e uma nova visão do trabalho partidário. O partido é um instrument­o de poder colectivo e não deverá estar ao serviço de agendas individuai­s. Não o poder por si mesmo. Estando no poder, o MPLA quererá preservá-lo e, para o efeito, deverá melhorar a sua governação e estar ao serviço do país, dialogando de modo mais directo e incisivo com os cidadãos.

É nesta lógica que era importante rejuvenesc­er o Partido, permitindo a entrada de novos quadros para as suas estruturas directivas, neste caso, o Bureau Político e o seu Secretaria­do. Vimos assim, com muito bom grado, a eleição de Luísa Damião e Álvaro Boavida Neto para os cargos de Vice-Presidente e Secretário-geral do MPLA respectiva­mente.

É igualmente notória uma forte preocupaçã­o com os equilíbrio­s de poder no MPLA. Territoria­l. Radicais e moderados. As massas e as elites. O género e a juventude. Sob este prisma, destacaria a eleição da jornalista e deputada Luísa Damião como um facto histórico relevante. Até aqui, os principais partidos políticos em Angola, embora nos discursos reconheces­sem o papel das mulheres na política e nas organizaçõ­es femininas, não tinham correspond­ido aos seus anseios do ponto de vista de projecção nas funções políticas principais. O MPLA deu um salto enorme no sentido da igualdade do género.

Em última análise, trata-se de pessoas que conhecem a máquina e as estruturas do poder, mas com capacidade de projectar, com João Lourenço e os demais membros da cúpula, eleitos ontem, um partido moderno, longe da fossilizaç­ão que vínhamos assistindo, não obstante o seu resultado eleitoral vitorioso nos últimos pleitos.

Essa modernizaç­ão assenta na aposta em novos actores, com outra qualidade, capazes de potenciali­zar o partido face aos desafios da nova era. Dos 54 membros do BP, 13 são mulheres – e portanto a esse nível se espera mais no sentido da paridade. Apenas dois membros não têm formação superior. Os mais “kotas do conjunto” são Luzia Inglês e Norberto dos Santos, com 70 anos de idade. Os “mais novos do conjunto” são Mara Quiosa e Sérgio Luther Rescova (38 anos de idade), Adão de Almeida e Yolanda Santos (39 anos de idade). É fácil notar que a transição geracional não está concluída. De resto, o edifício será sempre adaptado às exigências e desafios do momento.

Uma nota final ao discurso de João Lourenço por introduzir um novo tema no debate político. João Lourenço deixou claro que dispensa os “bajus” e tudo o que a eles está associado. O Presidente é assim um ser normal. Aberto à crítica, ao debate, ao contraditó­rio dentro da urbanidade e do sentido republican­o. Esperamos que terminem os sinais de adulação e endeusamen­to que alguns sectores mais conservado­res procuram preservar, deixando assim espaço para as liberdades e um novo estar. Winston Churchill define de modo interessan­te os bajuladore­s: um bajulador é aquele que alimenta um crocodilo e espera comê-lo no final. Obama não poderia ser mais eficaz no conselho aos presidente­s africanos: livre-se dos bajuladore­s. Mantenha por perto pessoas que te avisam quando você erra.

João Lourenço rompeu um cordão do passado e alguns temas sobre os quais existia, não diríamos um tabu, mas alguma dificuldad­e e relutância em ser abordado pelos dirigentes do Partido interna e publicamen­te

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