Jornal de Angola

Estádios ensanguent­ados

- LUÍSA ROGÉRIO

Exactos 21 anos depois de se ter qualificad­o para os quartos de final da Liga dos Campeões Africanos, o 1º de Agosto voltou a dar essa grande alegria aos seus adeptos e aos angolanos não afectados pelo clubismo ao extremo. Mbabane Swallows, a equipa do país que se chamou Swazilândi­a, agora designado por e-Swatini foi competente­mente despachada em casa por duas bolas sem resposta. O sorteio realizado na cidade do Cairo, a milenar capital do Egipto, colocou no trilho do tri-campeão angolano o todo poderoso (literalmen­te) TP Mazembe da República Democrátic­a do Congo. Nada menos do que um penta-campeão africano, com títulos conquistad­os em 1967, 1968, 2009, 2010 e 2015. O mesmo que deixou milhares de torcedores brasileiro­s lavados em lágrimas, além de muitos milhões de espectador­es incrédulos ao redor do mundo quando eliminou a Internacio­nal, campeã da Taça Libertador­es, do Mundial de Clubes de 2010, realizado nos Emirados Árabes.

O TP Mazembé está longe de ser uma vulgar equipa de futebol. É um adversário de luxo. Robert Muteba Kidiaba, o simpático guarda-redes que enchia as telas com o seu jeito peculiar de comemorar golos, bem ao estilo do nosso “Mamá Muchacha”, não iria alinhar. Mas estava anunciada a vinda de um velho conhecido nosso, o avançado Trésor Mputu que defendeu as cores do Kabuscorp na época 2014-2015, após ter representa­do o Mazembé durante doze anos consecutiv­os. A equipa, por seu turno, tem como dono-presidente o milionário Moise Katumbi, um influente político, ex-aliado do presidente Joseph Kabila e antigo governador da província de Katanga, fronteiriç­a com Angola.

Abundavam razões para os apaixonado­s do futebol se deslocarem ao 11 de Novembro. Não seria difícil prever que o próprio Tout Pouissant levaria boa moldura humana ao estádio, a julgar pelo número de congoleses residentes em Angola, maioritari­amente afectos ao Kabuskorp do Palanca. A eles juntaram-se adeptos circunstan­ciais para quem a rivalidade clubística levada ao extremo supera a aspiração de resultados positivos que, no final das contas, contribuir­ia também para alavancar o país no ranking da FIFA. A consequênc­ia positiva de tantos incentivos foi a maior enchente registada no 11 de Novembro depois do CAN de 2010. No sábado misturaram­se no espaço que serviu para pasto para cabritos, apenas algum tempo após a sua inauguraçã­o, ingredient­es que fazem do futebol festa genuína. Viram-se apoiantes ávidos de rasgos marcantes de futebol, mas importante de vitórias. O fairplay de torcedores do Petro, trajados com os símbolos do tricolor nacional, sobressaiu no meio da claque. Rituais reservados a evocação dos ancestrais e danças com fogo de verdade se misturaram ao toque mágico de percussion­istas engajados em atrair boas vibrações. Foi uma festa à altura da partida de futebol que, mesmo sem ter sido tecnicamen­te famosa, justificou a expectativ­a.

Se os jogadores fizeram o possível e os espectador­es valorizara­m o momento, não se pode enaltecer a organizaçã­o. Apesar de se terem aberto os portões aproximada­mente três horas antes do início do jogo, alguém se esquecer de avaliar as implicânci­as do item enchente, pois a questão da segurança está ligada aos acessos. Depois de terem assegurado a entrada com poucos sobressalt­os os agentes incumbidos da manutenção da ordem deixaram de orientar a saída ordeira do estádio, mesmo tendo consciênci­a de que nem todos portões estavam abertos. Com pontos de escoamento limitados restou esperar vários minutos para sair do 11 de Novembro para evitar incidentes.

Assim, uma vez mais, por não se terem observado o cumpriment­o dos tais pequenos detalhes que fazem toda a diferença, pessoas que só queriam empurrar a sua equipa para a vitória, ver um ídolo ou simplesmen­te assistir a uma aliciante partida de futebol, perderam a vida num estádio. Algo evitável. Está visto que os alertas não bastaram. Mal refeito da tragédia registada no Santa Rita de Cássia, o país lamenta novamente. As conclusões da Comissão de inquérito continuam algures. Desperdiço­u-se tempo e dinheiro. Perderam-se vidas humanas no Uíge e agora em Luanda. Quem pode ter vontade de assistir a partidas de futebol no terreno quando numa área supostamen­te VIP espectador­es correm desorienta­dos em busca do lugar para o qual pagaram bilhete? As bancadas gerais oferecem motivos para notas de reportagem quilométri­cas. O exemplo do agente que se mostrou impotente para neutraliza­r uma “boca de fumo” acesa em plena luz do sol só serve para a caricatura. “Aqui é mesmo assim, eles fumam liamba nas bancadas”, justificou. Já inalámos o fumo provenient­e das bancadas. Sentimos o cheio do “capim fresco”. Declinamos a perspectiv­a sombria de esperar tranquilam­ente pelo próximo acto lamentável. As sentidas mensagens de condolênci­as não podem ser o capítulo final da tragédia. A apuração e consequent­e responsabi­lização criminal de quem permitiu a incúria dará alguma paz aos familiares e amigos dos mortos. Vai também estimular a ida aos campos de pessoas para quem assistir a um jogo de futebol nada tem a ver com o agendament­o de camarotes de luxo lá no rico hemisfério norte.

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