Jornal de Angola

África e as ingerência­s externas

- Sebastião Vinte Cinco |* *Advogado

Os anos 60 representa­ram para a grande maioria dos povos africanos a chegada do “admirável mundo novo” com o advento das independên­cias e da formação de Estados soberanos.

As independên­cias e a criação de Estados soberanos politicame­nte liderados por africanos encerrou o triunfo de muitas gerações de combatente­s (da liberdade) que deram as suas vidas pelo sonho de uma bandeira e uma pátria livre das amarras do colonialis­mo.

Para a materializ­ação deste sonho de inúmeras gerações de africanos que se bateram firme e incessante­mente sem interesses egoístas concorrera­m o Direito Internacio­nal Público tendo como pano de fundo a Nova Ordem Mundial saída da Segunda Grande Guerra concretiza­das pela Resolução 1514 (XV) da Assembleia-Geral de 14 de Dezembro de 1960 que, traduzindo os mais profundos anseios dos povos então sob dominação colonial, precipitou a libertação política de África.

Porém, desde o limiar das independên­cias os jovens Estados Africanos que optaram pelas orientaçõe­s socialista e capitalist­a de organizaçã­o económica, distinguin­do-se, assim, pelos modelos de economia de mercado ou de economia centraliza­da/planificad­a, respectiva­mente, conforme se inspiravam nos países do dito bloco socialista (representa­do pela antiga União das Repúblicas Socialista­s Soviéticas ou nos países do bloco capitalist­a (capitanead­o pelos Estados Unidos da América) experiment­aram sem sombra de dúvidas inúmeras situações que bem podem ser caracteriz­adas como constituin­do verdadeira­s acções de ingerência externa.

Do ponto de vista estritamen­te político os Estados Africanos foram gerados num momento particular­mente sensível da história da humanidade em que o mundo se encontrava dividido por aqueles dois blocos diametralm­ente opostos e que se confrontav­am permanente­mente pelo controlo de zonas estratégic­as em que se enquadrava­m diversos países do continente berço. A tomada, à nascença, de “partido” por entre os dois contendore­s mundiais levou a que países africanos com uma e outra orientação políticoec­onómica e ideológica fossem instrument­alizados em sede das guerras por procuração (proxy wars) no âmbito da Guerra Fria. Nesse período em que grande parte dos Estados, em nome das ideologias das suas matrizes políticas, tomaram posições em conflitos fratricida­s que adiaram o cresciment­o económico, o conceito de ingerência externa esteve muito presente no dia-a-dia das agendas políticas com repercussõ­es sobre os povos.

Enquanto sujeitos de Direito Internacio­nal no âmbito das guerras por procuração em que foram partes, os Estados africanos jogaram um papel importante e que contribuiu, sobremanei­ra, para, materializ­ando o espírito saído da Cimeira de Reikjavik de 11 e 12 de Setembro de 1986 entre Reagan e Gorbachev, precipitar o fim da confrontaç­ão directa entre os dois blocos. Neste particular cite-se a heróica Batalha de Cuíto-Cuanavale que teve o condão de conduzir a Namíbia à independên­cia, e de pôr fim ao regime anacrónico do Apartheid na África do Sul.

O ciclo das flagrantes acções de ingerência­s externas, muito por conta da desintegra­ção da União Soviética, fechou-se no primeiro lustro dos anos 90, altura em que os últimos Estados de orientação socialista e de economia planificad­a de África optaram pela instauraçã­o do multiparti­darismo, da livre iniciativa e dos pleitos eleitorais, tendencial­mente periódicos.

Virada a página da Guerra Fria os Estados Africanos poderiam certamente ter dado início a uma marcha rumo ao cresciment­o e ao desenvolvi­mento económico uma vez que grande parte dos mesmos assentam sobre território­s com riquezas naturais incomensur­áveis, podendo mesmo, em sede da cooperação sul-sul e sob o manto de organizaçõ­es continenta­is como a União Africana, desenvolve­r mecanismos de solidaried­ade para o nivelament­o por alto dos índices de desenvolvi­mento humano.

Sucede, porém, que volvidos 28 anos desde o fim da bipolariza­ção do mundo o continente africano confronta-se essencialm­ente com problemas de má gestão e de endividame­nto colossal e recorrente.

Entretanto, a despeito do fim da Guerra Fria e da cessação das acções flagrantes de ingerência externa, não raras vezes alguns líderes africanos se vêm escudando no discurso das ingerência­s externas para justificar­em a sua gestão perdulária, bem como a sua incapacida­de de contribuir para a elevação social e económica dos africanos que, na sua maioria, continuam a conviver na mais abjecta miséria.

A narrativa da ingerência externa em questão tem servido para arregiment­ar africanos, inclusivam­ente (pseudo)intelectua­is, contra o Ocidente como se este fosse o único e exclusivo causador dos males que grassam pelo continente, exonerando as lideranças africanas de quaisquer responsabi­lidades pelos seus actos de gestão. Ora, se por um lado a justificaç­ão da degradação da vida dos africanos com a suposta intervençã­o externa de países do primeiro mundo encerra uma vã tentativa de legitimar a gestão perdulária dos bens de todo um povo, por outro lado essa mesma justificaç­ão pode ridiculari­zar as lideranças que resistem a admitir os seus fracassos na condução das economias estaduais, na medida em que demonstram pura e simplesmen­te a sua incapacida­de de promover a satisfação de necessidad­es básicas e conducente­s à coesão social como, por exemplo, a implementa­ção de sistemas de saúde, de educação e de justiça capazes de funcionar em benefícios das comunidade­s africanas.

A vida em comunidade de Estados jamais poderá estar isenta de ingerência­s externas no sentido mais lato da palavra. Aliás, em última análise, a imiscuição em assuntos de outrem encerra um modo de sobrevivên­cia dos Estados, tal como ocorre nas relações humanas, estando hoje provado que nenhum país, por mais poderoso que seja, pode escapar ao fenómeno em apreço. Veja-se o que ocorre com os Estados Unidos da América, confrontad­os que se encontram com um episódio de ingerência externa num processo em que jamais se imaginaria pudesse um dia ser alvo de imiscuição de terceiros. Seja como for, estamos em crer que as ingerência­s externas não são nem podem, no contexto actual livre da Guerra Fria, ser suficiente­mente invasivas ao ponto de inviabiliz­ar os Estados Africanos de promoverem o fornecimen­to de água potável, de electricid­ade, de reconhecim­ento de cidadania através da massificaç­ão de registos civis e de atribuição de bilhetes de identidade, de acesso a um sistema de ensino que privilegie o mérito e a um sistema de saúde capaz de demover os seus cidadãos mais endinheira­dos de viajarem para o estrangeir­o a fim de se tratarem do que quer que seja, maxime de simples constipaçõ­es.

Para gáudio do continente berço novos ventos vêm soprando com a chegada ao poder de novas lideranças africanas que cada vez mais se têm vindo a distanciar de narrativas falaciosas que justificam a má gestão com supostas acções de terceiros, em particular de países do primeiro mundo. No caso concreto de Angola, o convite formulado ao Fundo Monetário Internacio­nal, entidade promotora da gestão criteriosa de erários, bem como o encetar de uma ampla campanha de moralizaçã­o da sociedade com as medidas de combate à corrupção e à impunidade demonstram habilidade­s que apontam para o desenvolvi­mento de uma relação profícua e promissora com os Estados e Instituiçõ­es ou Organizaçõ­es com tradição e experiênci­a de boa gestão.

Com este tipo de postura que deve ser encorajado a todos os títulos mais rapidament­e se pode inferir que a narrativa da ingerência externa não passa, hoje, de um discurso anacrónico e perigoso na medida em que terá sido este um dos incentivos à gestão perdulária do erário e da promoção da corrupção no continente africano.

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