África e as ingerências externas
Os anos 60 representaram para a grande maioria dos povos africanos a chegada do “admirável mundo novo” com o advento das independências e da formação de Estados soberanos.
As independências e a criação de Estados soberanos politicamente liderados por africanos encerrou o triunfo de muitas gerações de combatentes (da liberdade) que deram as suas vidas pelo sonho de uma bandeira e uma pátria livre das amarras do colonialismo.
Para a materialização deste sonho de inúmeras gerações de africanos que se bateram firme e incessantemente sem interesses egoístas concorreram o Direito Internacional Público tendo como pano de fundo a Nova Ordem Mundial saída da Segunda Grande Guerra concretizadas pela Resolução 1514 (XV) da Assembleia-Geral de 14 de Dezembro de 1960 que, traduzindo os mais profundos anseios dos povos então sob dominação colonial, precipitou a libertação política de África.
Porém, desde o limiar das independências os jovens Estados Africanos que optaram pelas orientações socialista e capitalista de organização económica, distinguindo-se, assim, pelos modelos de economia de mercado ou de economia centralizada/planificada, respectivamente, conforme se inspiravam nos países do dito bloco socialista (representado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ou nos países do bloco capitalista (capitaneado pelos Estados Unidos da América) experimentaram sem sombra de dúvidas inúmeras situações que bem podem ser caracterizadas como constituindo verdadeiras acções de ingerência externa.
Do ponto de vista estritamente político os Estados Africanos foram gerados num momento particularmente sensível da história da humanidade em que o mundo se encontrava dividido por aqueles dois blocos diametralmente opostos e que se confrontavam permanentemente pelo controlo de zonas estratégicas em que se enquadravam diversos países do continente berço. A tomada, à nascença, de “partido” por entre os dois contendores mundiais levou a que países africanos com uma e outra orientação políticoeconómica e ideológica fossem instrumentalizados em sede das guerras por procuração (proxy wars) no âmbito da Guerra Fria. Nesse período em que grande parte dos Estados, em nome das ideologias das suas matrizes políticas, tomaram posições em conflitos fratricidas que adiaram o crescimento económico, o conceito de ingerência externa esteve muito presente no dia-a-dia das agendas políticas com repercussões sobre os povos.
Enquanto sujeitos de Direito Internacional no âmbito das guerras por procuração em que foram partes, os Estados africanos jogaram um papel importante e que contribuiu, sobremaneira, para, materializando o espírito saído da Cimeira de Reikjavik de 11 e 12 de Setembro de 1986 entre Reagan e Gorbachev, precipitar o fim da confrontação directa entre os dois blocos. Neste particular cite-se a heróica Batalha de Cuíto-Cuanavale que teve o condão de conduzir a Namíbia à independência, e de pôr fim ao regime anacrónico do Apartheid na África do Sul.
O ciclo das flagrantes acções de ingerências externas, muito por conta da desintegração da União Soviética, fechou-se no primeiro lustro dos anos 90, altura em que os últimos Estados de orientação socialista e de economia planificada de África optaram pela instauração do multipartidarismo, da livre iniciativa e dos pleitos eleitorais, tendencialmente periódicos.
Virada a página da Guerra Fria os Estados Africanos poderiam certamente ter dado início a uma marcha rumo ao crescimento e ao desenvolvimento económico uma vez que grande parte dos mesmos assentam sobre territórios com riquezas naturais incomensuráveis, podendo mesmo, em sede da cooperação sul-sul e sob o manto de organizações continentais como a União Africana, desenvolver mecanismos de solidariedade para o nivelamento por alto dos índices de desenvolvimento humano.
Sucede, porém, que volvidos 28 anos desde o fim da bipolarização do mundo o continente africano confronta-se essencialmente com problemas de má gestão e de endividamento colossal e recorrente.
Entretanto, a despeito do fim da Guerra Fria e da cessação das acções flagrantes de ingerência externa, não raras vezes alguns líderes africanos se vêm escudando no discurso das ingerências externas para justificarem a sua gestão perdulária, bem como a sua incapacidade de contribuir para a elevação social e económica dos africanos que, na sua maioria, continuam a conviver na mais abjecta miséria.
A narrativa da ingerência externa em questão tem servido para arregimentar africanos, inclusivamente (pseudo)intelectuais, contra o Ocidente como se este fosse o único e exclusivo causador dos males que grassam pelo continente, exonerando as lideranças africanas de quaisquer responsabilidades pelos seus actos de gestão. Ora, se por um lado a justificação da degradação da vida dos africanos com a suposta intervenção externa de países do primeiro mundo encerra uma vã tentativa de legitimar a gestão perdulária dos bens de todo um povo, por outro lado essa mesma justificação pode ridicularizar as lideranças que resistem a admitir os seus fracassos na condução das economias estaduais, na medida em que demonstram pura e simplesmente a sua incapacidade de promover a satisfação de necessidades básicas e conducentes à coesão social como, por exemplo, a implementação de sistemas de saúde, de educação e de justiça capazes de funcionar em benefícios das comunidades africanas.
A vida em comunidade de Estados jamais poderá estar isenta de ingerências externas no sentido mais lato da palavra. Aliás, em última análise, a imiscuição em assuntos de outrem encerra um modo de sobrevivência dos Estados, tal como ocorre nas relações humanas, estando hoje provado que nenhum país, por mais poderoso que seja, pode escapar ao fenómeno em apreço. Veja-se o que ocorre com os Estados Unidos da América, confrontados que se encontram com um episódio de ingerência externa num processo em que jamais se imaginaria pudesse um dia ser alvo de imiscuição de terceiros. Seja como for, estamos em crer que as ingerências externas não são nem podem, no contexto actual livre da Guerra Fria, ser suficientemente invasivas ao ponto de inviabilizar os Estados Africanos de promoverem o fornecimento de água potável, de electricidade, de reconhecimento de cidadania através da massificação de registos civis e de atribuição de bilhetes de identidade, de acesso a um sistema de ensino que privilegie o mérito e a um sistema de saúde capaz de demover os seus cidadãos mais endinheirados de viajarem para o estrangeiro a fim de se tratarem do que quer que seja, maxime de simples constipações.
Para gáudio do continente berço novos ventos vêm soprando com a chegada ao poder de novas lideranças africanas que cada vez mais se têm vindo a distanciar de narrativas falaciosas que justificam a má gestão com supostas acções de terceiros, em particular de países do primeiro mundo. No caso concreto de Angola, o convite formulado ao Fundo Monetário Internacional, entidade promotora da gestão criteriosa de erários, bem como o encetar de uma ampla campanha de moralização da sociedade com as medidas de combate à corrupção e à impunidade demonstram habilidades que apontam para o desenvolvimento de uma relação profícua e promissora com os Estados e Instituições ou Organizações com tradição e experiência de boa gestão.
Com este tipo de postura que deve ser encorajado a todos os títulos mais rapidamente se pode inferir que a narrativa da ingerência externa não passa, hoje, de um discurso anacrónico e perigoso na medida em que terá sido este um dos incentivos à gestão perdulária do erário e da promoção da corrupção no continente africano.