Os labirintos da Justiça
Um caso de violação sexual ocorrido em Portugal, voltou a trazer para a ribalta questões que se prendem com a forma como a Justiça tece as suas malhas e os labirintos que ela vai criando para se distanciar, cada vez mais perigosamente, do entendimento que dela tem o comum dos cidadãos, criando expectativas que quando frustradas se podem revelar contraproducentes. Lá como cá.
A jornalista portuguesa Fernanda Câncio, articulista do “Diário de Notícias”, escreveu esta semana um texto onde descreve com sentido crítico aquela que foi a mais recente polémica decisão tomada em tribunal e que já fez, e vai continuar a fazer, correr muita tinta.
Na base da crítica jornalista e da decepção da sociedade está a suave sentença de prisão com pena suspensa aplicada a dois homens que na casa de banho de uma discoteca violaram, ou abusaram (na versão da Justiça) de uma jovem que estaria, eventualmente, sob o efeito de drogas e de bebidas alcoólicas.
A questão que ditou a branda sentença, na opinião dos juízes, tem a ver com o facto da violação ser julgada como abuso pelo facto de não ter sido acompanhada de “violência, ameaça grave ou colocação da vítima em incapacidade de resistir”, entendendo por isso os juízes que se tratou de um caso de “sedução mútua”, embora “não consentida”.
Escreve Fernanda Câncio que “mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra a sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação olha, fui abusado sexualmente quando estava incapaz de resistência. Dirá que foi violado, porque se sentirá violado”.
Para a jornalista “esta interpretação do Código Penal, pretendendo ser moderna e de acordo com a Convenção de Istambul, mantém o espírito de antanho - aquele para o qual violação a sério é quando a vítima leva pancada de criar bicho, lhe apontam uma faca ou lhe metem droga na bebida”.
Penetrando nos labirintos pelos quais se move a Justiça, a jornalista tenta perceber a razão pela qual a violação da jovem não foi competentemente punida e pergunta se será que “basta dizer que ela, jovem, esteve a dançar na pista, ou que estava de shorts ou que bebeu, para que tenha contribuído para a sua própria agressão”.
Fernando Câncio critica ainda a tendência que a Justiça tem, seja em que país for, de se tornar num sector corporativo onde os diferentes actores se defendem das acusações ou reparos que a sociedade lhes faz quando não concorda, ou não percebe, as malhas que está a tecer.
Este caso é para aqui agora trazido para ilustrar a complexidade que envolve os meandros da Justiça, independentemente do país onde ela esteja a ser aplicada especialmente quando, através da mediatização, naturalmente se expõe ao crivo da opinião pública que muitas vezes confunde o seu desejo com a letra que a lei impõe.
Esta exposição cria problemas acrescidos aos actores que têm a incumbência de aplicar essa mesma Justiça, sobretudo quando colocados no centro das críticas ou das especulações, muitas vezes feitas mais com o coração do que com as razões técnicas ajustadas às diferentes situações.
Por isso, seria bom que quem tem a responsabilidade de entre nós fazer girar a roda da Justiça tenha a noção de que, efectivamente, ninguém está acima da lei e que o facto de os diferentes processos em curso envolverem figuras mediáticas lhes traz apenas e tão só a responsabilidade acrescida de decidirem sabendo da importância e do impacto que essa decisão terá na sociedade.
Quando se aproximam dias para grandes decisões jurídicas, aguardadas pela sociedade com a impaciência que os nomes envolvidos justifica, é importante que os juízes mantenham a serenidade até agora manifestada e não se deixem pressionar por uma opinião pública sedenta de Justiça.
Uma Justiça que precisa de ser feita de forma clara e transparente, com o rigor que a lei e a sociedade exigem para que não restem dúvidas quanto à sua real efectividade prática, o que Fernanda Câncio defende não ter acontecido em relação ao caso ocorrido esta semana em Portugal.
Seria bom que quem tem a responsabilidade de, entre nós, fazer girar a roda da Justiça tenha a noção de que, efectivamente, ninguém está acima da lei e que o facto de os diferentes processos em curso envolverem figuras mediáticas lhes traz apenas e tão só a responsabilidade acrescida de decidirem sabendo da importância e do impacto que essa decisão terá na sociedade