A PGR, o combate à corrupção e a formação do corpo de delito
Reduzir as acções de combate à impunidade e à corrupção desencadeadas pelo Ministério Público a um exercício de perseguição política e que tem por fim último atingir o ex-Presidente da República é, além de pouco sensato, um ensaio para tentar diluir o amplo movimento de reformas encetadas pelo novo Executivo e que visam a moralização da sociedade.
Vindos de uma realidade em que, apesar de existir uma Lei da Probidade Pública, choviam críticas de quase todos os lados porque ela não era aplicada e porque jamais alguém tinha, no âmbito da mesma, sido levado a responder em tribunal por eventuais descaminhos de dinheiros públicos, o que mais se esperava era que houvesse o primeiro sinal nesse sentido, face, também, as reiteradas promessas feitas pelo Presidente da República no sentido de mudar o quadro.
Essa mudança - e outras que já foram introduzidas -, decorre de uma exigência do Estado. É do interesse do Estado que o combate à corrupção e à impunidade se faça para preservar o bem público da cultura de rapina que se instalou.
E porque por algum lado teria de se começar, e vale aqui lembrar que pelo tribunal já haviam passado outros processos que mereceram a respectiva sentença - como o dos três funcionários do Ministério da Saúde acusados de desvio da ajuda do Fundo Global de Luta contra a Malária em Angola -, natural era que, pela notoriedade das figuras públicas envolvidas, os casos mais recentes e as medidas de coacção aplicadas chamassem mais atenção da sociedade e a imprensa lhes desse a correspondente visibilidade mediática.
Ora, o Direito Penal recorta/tipifica os actos que constituem crimes e determina as sanções ou penas a quem os cometer. Se fulano cometeu ou não um crime cabe ao Ministério Público investigar, inquirir, proceder à instrução preparatória, constitui-lo arguido ou não, enfim, promover o processo (dar andamento) e a acção penal (introdução da causa em juízo), se houver fundamento para tanto.
Ou seja, a PGR não inventa (não pode/não deve) os factos criminais. Na instrução preparatória deve reunir todo o conjunto de provas que forma o corpo de delito e que vai permitir dar sustentabilidade à acusação.
Quer isso dizer que, se de todo o trabalho preliminar realizado resultarem factos, evidências e indícios a priori irrefutáveis, não vemos como não se possa levar o caso a juízo porque, entretanto, há um temor reverencial, ou porque se receia que venha a ser entendida, essa acção, como perseguição política, deixando que prevaleça o mal maior em detrimento do interesse público e da Nação.
Mas é importante referir que não se deve olhar para a acção do Ministério Público apenas na perspectiva das detenções e prisões preventivas. Existem casos de cidadãos constituídos arguidos e depois afastados dos processos em que tinham sido arrolados, que estão aí para provar que a Procuradoria-Geral da República, apesar das dificuldades que ainda enfrenta, está a dedicar todo o empenho no tratamento dos diferentes dossiers.
Curioso em tudo isto é notar que, em alguns pronunciamentos sobre determinadas questões em concreto, há como que uma identidade de posições entre alguns sectores descontentes do próprio MPLA e certas vozes da oposição. Obviamente que, por motivos diferentes, mas em que salta à vista a sintonia de pensamento.
Quer uns quer outros “alinham” na tese da perseguição política, como já estiveram “alinhados” na defesa do princípio, segundo o qual João Lourenço devia abdicar da presidência do MPLA.
Para os primeiros João Lourenço deveria preocupar-se apenas em “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem” cuidando de deixar conforme encontrou muitas coisas que estão erradas. É claro que isso não faz um mínimo sentido.
Para os segundos denota-se uma preocupação evidente com o facto de que, com essas acções, a oposição fica sem chão, ou seja, sem espaço de manobra e sem argumentos de peso para atacar o Executivo e o próprio MPLA em relação ao tema do combate à corrupção e à impunidade.
Todos sabemos que esse combate é, na sociedade, transversal. Não podemos esquecer que não são apenas os casos mediáticos que corrompem a sociedade. Nalgumas repartições públicas sabemos que, ainda hoje, há práticas que teimam em sobreviver. Há situações em que a inércia faz parte do jogo da “pequena corrupção” para obrigar o cidadão a ter de desembolsar para ver satisfeita a sua necessidade.
As reformas políticas em curso em Angola estão apenas no início e é natural que aqui e ali se perfilem críticas, umas para tentar desvirtuá-las ou frear o seu ímpeto, outras ainda completamente à leste do que em profundidade elas visam alcançar.
Essas reformas são, a todos os níveis, estruturantes. Quer do ponto de vista político, económico e sócio-cultural (e aqui um aparte vai para o tipo de mentalidade reinante na sociedade). Confundi-las com um mero desejo de vingança e de perseguição política e uma “acção voluntarista” é um equívoco que a história se encarregará de confirmar.