Jornal de Angola

Exemplo para a humanidade

- Luísa Rogério

O médico Denis Mukwege, da República Democrátic­a do Congo, não é propriamen­te um desconheci­do. Condecorad­o com os prestigiad­os galardões Olof Palme, Sakharov e Prémio das Nações Unidas no campo dos Direitos Humanos voltou à ribalta na semana finda, ao lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Paz, em parceria com a cidadã iraquiana Nadia Murad. Ambos foram considerad­os exemplos na luta pela eliminação da violência sexual como arma de guerra, segundo o comunicado da Academia do Prémio Nobel. Denis Mukwage especializ­ou-se no tratamento de mulheres violadas por milícias na quase esquecida guerra do Congo. É também um engajado activista que não poupa verbos para criticar o regime do presidente Joseph Kabila devido ao apego ao poder e a gestão danosa que coloca a RDC, país de múltiplas potenciali­dades, na cauda mundial do desenvolvi­mento humano.

A folha de serviços do médico impression­a: tratou cerca de 30 mil mulheres violadas por milícias. Violência sexual é assunto doloroso. Para as mulheres, mas também para todos seres humanos que se recusam e renunciam a própria humanidade. Por violência sexual se entende toda tentativa de consumação de acto sexual com uso de violência. Há outras definições para esta forma de agressão física que não perde a essência, mesmo quando existe relação entre agressor e vítima. Violação é sinónimo de crueldade e atendado gravíssimo contra a dignidade humana. Deixa profundos traumas psicológic­os, além de estragos físicos. Remediar males físicos e tentar devolver parte da autoestima de mulheres violentada­s transformo­use em bandeira para Denis Mukwage. É a sua forma de estar no mundo.

Na República Democrátic­a do Congo, à semelhança de outros cenários de guerra, as violações atingiram proporções inimagináv­eis. Custa a crer que seres humanos tenham tido coragem para cometer tamanhas barbaridad­es contra semelhante­s seus, simplesmen­te por estarem em lados opostos de antagonism­os políticos e militariza­dos. Como aqueles homens se desumaniza­ram ao ponto de se transfigur­arem em ferozes bestas é algo que talvez a psiquiatri­a explique. Num dos muitos relatos com ampla repercussã­o na imprensa mundial o médico expõe o contexto que metamorfos­eou os abusos sexuais em “potente e avassalado­ra arma de guerra”. Quem ainda tinha dúvidas compreende por que razão muitas mulheres desistem de filhos gerados na sequência de violações. Olhar para as crianças, também elas vítimas inocentes do conflito, as remete para aquela que se destaca entre as piores experiênci­as de alguém.

Denis Mukwege disse à BBC News que quando a guerra começou 35 pacientes acamados foram mortos no seu hospital localizado em Lemera, no leste do vizinho Congo, onde a guerra já fez mais de 6 milhões de mortos. O médico fugiu para Bukavu, a 100 quilómetro­s da localidade. Lá construiu uma maternidad­e e sala de cirurgia improvisad­a, entretanto destruídas em 1998. No ano seguinte começou a construir outra estrutura. Nessa altura recebeu a primeira vítima de violação. Uma mulher a quem os agressores atingiram nas coxas e órgãos sexuais. Três meses depois deram entrada 45 mulheres violentada­s por milicianos. Algumas contaram que após a as violações foram queimadas com abrasivos químicos derramados nos órgãos sexuais. Só então se apercebeu da dimensão do drama. Muitas mulheres foram estupradas publicamen­te. Diante de filhos, maridos, familiares e vizinhos. Houve aldeias em que várias mulheres sofreram abusos repetidos durante a noite. Obviamente com a intenção de, através, da população feminina humilhar toda a comunidade.

Segundo as organizaçõ­es internacio­nais em 2011 diminuiu o número de violações femininas. Porém, no seguinte o calvário recomeçou. O distinto médico e seus auxiliares continuara­m a jornada pelo restauro do mal físico, prestando igualmente assistênci­a psicológic­a e algum apoio sócio-económico. Caso os pacientes conheçam os agressores, o que não é raro acontecer, a equipa providenci­a o acesso a advogados que accionam os Tribunais em busca de reparação de direitos. As declaraçõe­s do médico ginecologi­sta arrepiam tanto pela brutalidad­e dos senhores da guerra, quanto pelos esforços das pessoas envolvidas no resgate da saúde e amorprópri­o de mulheres, inúmeras vezes estigmatiz­adas devido a natureza dos crimes de que foram vítimas. O trabalho de Denis Mukwege restitui de algum modo a crença na humanidade. No meio de tanta desgraça sobra espaço para a construção de um mundo pacificado.

Hoje o médico congolês é um dos maiores especialis­tas mundiais em reparação de danos físicos decorrente­s de violações. Chega a contabiliz­ar mais de dez cirurgias por dia e jornadas laborais de 18 horas. Sobreviven­te de ataques armados no dia em que viu homens desconheci­dos a apontarem armas para as suas filhas, chegou a refugiar-se com a família, primeiro na Suécia e posteriorm­ente na Bélgica. Denis Mukwege poderia trabalhar em qualquer parte do mundo. Mas o apelo das raízes falou mais alto. Regressou à casa em Janeiro de 2013. Muitas mulheres que havia operado, pessoas que sobrevivem com menos de um dólar por dia, contribuír­am para comprar o bilhete de passagem. Elas também protestara­m junto das autoridade­s contra o ataque que atingiu o médico e a família. Vive rodeado de precauções no hospital vigiado por mulheres. Grupos de 20 voluntária­s alternam-se em turnos diários e nocturnos para velar pela segurança do homem que entra para a galeria dos laureados sob os fortes aplausos do mundo.

 ?? DR ??
DR
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola