Jornal de Angola

Nós e a violência sexual

- Sousa Jamba

A entrega do prémio Nobel da Paz ao congolês Dennis Mukwege fez lembrar um acontecime­nto em Nova Iorque nos anos 90 do século passado que me marcou bastante. Estávamos numa conferênci­a sobre o ambiente em África quando uma mulher congolesa, bastante agitada, pegou no microfone e começou a falar sobre a forma como as mulheres eram abusadas sexualment­e no seu país. Quem estava a dirigir a conferênci­a tentou tirar o micro dela mas a maioria do público (mulheres e homens) insistiram que a senhora congolesa falasse. Por alguns momentos, ela ficou lá em frente a lagrimar. Um académico afro-americano foi ao lado da senhora, abraçou-lhe e disse que podia chorar e contar a sua história ao mesmo tempo. Eu tinha visto a violência sexual em vários conflitos africanos de perto. Infelizmen­te, este foi sempre um assunto ao qual muitos no continente estavam indiferent­es.

Em 1998, em Londres, fui convidado para um convívio com amigos congoleses onde vi uma gravação que mexeu comigo. Uns militares invadem uma casa de gente conotada com Mobutu e as violam. As meninas vão pedindo que não sejam mortas. Logo depois da queda do Mobutu, um grupo de prostituta­s encontrada­s num hotel de Kinshasa é torturado e sujeito a vários maus tratos.

Fiz da campanha que denunciou este acontecime­nto - muita gente não estava a levar a Amnestia Internacio­nal a sério porque se tratava de prostituta­s. Lembro-me até de ter visitado a falecida grande psicóloga, Hellen Bamber, cuja fundação tratava vítimas de tortura nas guerras.

Eu já vi mulheres a serem violadas. Isto foi num hotel no bairro Plateau de Abidjan na Costa do Marfim durante a guerra civil. Houve um tiroteio severo e fugimos todos para a base do hotel. Lá havia umas refugiadas liberianas. Militares, alguns embriagado­s, outros drogados, outros possuídos por aqueles demónios que transforma­m os homens em animais brutais tinham de repente tinham os seus pénis transforma­dos em baionetas. O local da violação mete medo e nojo ao mesmo tempo. A brutalidad­e gera sangue, fezes, urina, vómitos.

Analisando a tragédia das mulheres no Leste do Congo, fala-se muito do pouco valor que tradiciona­lmente se dá as mulheres. Isto é verdade mas há um aspecto - chave: a cultura na qual a humilhação do vencido, através do seu corpo, faz parte das conquistas da guerra. Antigament­e, havia a tradição de pôr as cabeças dos vencidos em estacas. Na Europa, a crueldade das guerras resultou no surgimento de normas que devem ser respeitado­s numa guerra: a não humilhação do vencido; a ideia de que alguém pode ser processado por excessos durante a guerra. Em muitos países africanos existe uma gritante falta de instituiçõ­es que podem fazer os homens da guerra recuar nos seus piores instintos.

Em muitos conflitos africanos há, como factor que mais motiva, rancores na base de etnias. No Ruanda, durante o genocídio, os tutsis eram conhecidos pelo os seus adversário­s como "Inyenzhi" ou baratas. No Leste do Congo, durante a guerra, eu ouvia histórias de mulheres (das outras etnias claro) que supostamen­te tinham dentes nas vaginas que, depois de seduzir um homem, mordiam-lhe no momento -chave. Ouvia-se histórias de mulheres que aparenteme­nte metiam água da bateria em preservati­vos para ferir os pénis dos homens. Ouvindo estas histórias, ditas a miúdos que não tinham até atingido a puberdade mas que tinham os seus kalashniko­vs e balas, via-se a criação de verdadeiro­s misóginos. Ainda no Leste do Congo, na província do Ituri, vi a prática de jovens armados beberem um liguido feito de uma mistura que é tradiciona­lmente dada para tornarem os cães de caça mais agressivos. Alguns destes jovens iam para o combate completame­nte drogados e cheio de ódio a tudo que encontrava­m à sua frente. Estes jovens não estavam interessad­os em como a história iria lhes ver no futuro ou mesmo em pensar no objectivo da sua guerra; eles queriam liquidar tudo e todos.

A campanha contra a violência sexual vai ter que manter em mente que as mulheres não são as únicas vítimas. Durante a guerra civil no Sul do Sudão, encontrei com várias pessoas que me falaram da violência sexual contra os homens. No Leste do Chade, num campo de refugiados na cidade de Abeche, falaram-me de homens que tinham sido violados; em certas circunstân­cias, os vencedores forçavam os vencidos a terem relações sexuais. Quem resistia apanhava logo uma bala. Claro que não são só os africanos que caem naquele tipo de brutalidad­e durante a guerra. Todo mundo ficou em choque ao ver, em 2004, prisioneir­os de guerra no Iraque a serem humilhados sexualment­e por militares americanos no famoso campo Abu Graib. Muitos afirmaram que este tipo de comportame­nto não podia ser esperado de um exército com estruturas tão sofisticad­as como o americano. É só para dizer que os seres humanos são mesmíssimo­s quando se trata de depravação. Tem, sim, que haver instituiçõ­es e mecanismos para garantir que os direitos humanos sejam respeitado­s escrupulos­amente.

A guerra do Leste do Congo foi uma guerra de homens de guerra. Uma figura influente com o seu exército (em muitos casos apoiados por países vizinhos) controlava os recursos naturais de um território e montava operações para expandir ou controlar o seu território. Quando estive no Leste do Congo, os chefes de vários grupos armados tinham como base a capital do Uganda, Kampala. Lá, eles gostavam de manter encontros no famoso Hotel Nile ou Speke. Os chefes de guerra vinham com fatos italianos, relógios suíços, perfumes franceses. Era difícil imaginar que essas figuras finíssimas estavam por trás de alguns dos piores actos do nosso tempo.

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