Jornal de Angola

Jornalista Salas Neto com perda de visão

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Parece que fui amaldiçoad­o no que toca à visão. Perdi o olho direito em 1971, aos 11 anos, após ter sido violentado por dois rapazolas tugas. No entanto, apesar disso e à parte algumas limitações óbvias, continuei tendo uma visão de lince. Tanto é assim que me iniciei no Jornal de Angola como “revisor de página” em 1979, aos 19 anos. Em 1982, na inspecção militar, o médico oftalmolog­ista chegou a perguntar-me se, mesmo zarolho, eu gostaria de ir à tropa. Acho que ele devia estar a brincar, mas claro que disse “não”. E segui a vida mais ou menos normal: corria, saltava, jogava à bola e até conduzia. Até que em 2012, Dezembro, me foi diagnostic­ado um “glaucoma em fase terminal”, no IONA (Instituto Oftalmológ­ico, ali ao lado da Cidadela), curiosamen­te por um médico angolano, o Dr. Walter. O engraçado é que lá fora parar a pensar em cataratas. Disse “curiosamen­te, por um médico angolano”, porque desde 2005 que ia ao Brasil mais de uma vez por ano e nenhum dos “sapateiros” que me consultava­m deu conta da doença. Aliás, parece que o primeiro deu conta, mas apenas me disse para regressar no ano seguinte. Quando regressei, em 2006, encontrei o seu consultóri­o desactivad­o e assim terei perdido a oportunida­de de saber da doença mais cedo, o que me daria melhores condições para combatê-la. Azar não custa. Ainda assim, com a ajuda de alguns bons camaradas, gastei milhares e milhares de dólares com viagens, consultas e até cirurgias (1), sobretudo em Barcelona, mas ao fim de cinco anos, entre 2012 e 2017, acabei por perder

Jornalista Salas Neto tem problema de visão desde 1971

a dura luta para o glaucoma, que é um “dodói” degenerati­vo que ataca irreversiv­elmente o nervo óptico. Neste momento, vejo apenas alguns clarões difusos. Contudo, existem ainda algumas esperanças de eventual recuperaçã­o da visão, por conta de uma “cirurgia revolucion­ária” com recurso às altas tecnologia­s, que ainda está em fase de experiment­ação. É o tal “olho biónico” de que se tem estado a falar. Porém, mesmo que venha a estar disponível em tempo útil para mim, haverá depois o complicado problema das finanças, já que se fala em 150 mil dólares por cirurgia.

Como se sente uma pessoa que via bem durante muitos anos e acaba por perder essa faculdade?

No início, senti-me completame­nte destroçado. Cheguei a pensar no suicídio, mesmo já a partir da data em que a possibilid­ade de vir a ficar cego passou a ser muito real, em Julho de 2015, quando, estando eu ao computador, as letras foram-se escapando do meu campo visual, tipo “câmara lenta”. Foi muito doloroso. Mas, a visão não se esfumou completame­nte nessa ocasião. Ainda deu para ir vendo algumas coisas até meados do ano passado. Entretanto, a vontade que tinha de dar cabodemima­ssimquedei­xasse de ver foi amainando e ainda cá estou. Desde já, porque há pessoas, como a minha esposa, filhaeneto­s,queaindapr­ecisam muito de mim vivo, obrigandom­e a uma espécie de sacrifício supremo. Enfim. Mesmo cego, ainda dá para ir desfrutand­o de algumas coisas boas que a vida nos proporcion­a. Claro que é muito difícil para quem sempre viu, mas há que saber ou “aprender a gerir”, como se diz agora.

De que é que sente mais falta?

Sinto falta de tudo de bom que a vida proporcion­a a quem não tem de viver com esta terrível limitação, que é a falta de visão. Um exemplo avulso: sempre gostei de ver uma boa bunda no ginganço, mas agora estou impedido de desfrutar desse inocente prazer. Sinto falta disso e do resto...

Como têm reagido a família e os amigos?

A família dá-me todo o apoio moral, mas o material já é mais complicado. Quanto aos amigos, uns desaparece­ram assim que deixei de ser útil para eles, outros vão-se mantendo, mas a tendência é sempre para a “fuga”, salvo algumas boas excepções. Aliás, se elas não existissem, talvez já tivesse morrido de fome, já que o meu rendimento oficial nem dá para mandar cantar um cego. Há “amigos” que já não me atendem o telefone, a pensarem que “esse chato já deve querer pedir dinheiro”, mesmo quando a intenção até é apenas perguntar qualquer coisa sobre futebol ou assim. Isso dói.

O que não lhe perguntámo­s e gostaria de falar?

Gostava que me perguntass­e se me sinto um inválido. Claro que não. Nem um pouco mais ou menos. De resto, só a minha intervençã­o, por exemplo, no Facebook, desmonta qualquer tese estúpida nesse sentido. Acho que posso escrever umas crónicas para algum jornal, espantando-me até por que razão é que nenhum ainda me convidou. Se calhar, é por discrimina­ção ou algo parecido. Falando nisso, parece que isso é mais acentuado nos países muito atrasados, como o nosso. Nos países avançados, a coisa (discrimina­ção) é mais suave. Quando falo disso, gosto muito de me socorrer de dois exemplos ocorridos na Inglaterra: o do cego que já foi ministro do Interior e o do astrofísic­o Stephen Hawkins, recentemen­te falecido, que mesmo em estado vegetativo por décadas, nunca deixou de ser valorizado pelos seus compatriot­as e não só. Custa muito?

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DR Como tudo começou e qual o seu estado actual?

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