Jornal de Angola

O balanço do “Milhorró” e as claques de futebol

- Luciano Rocha

Agora que está a terminar o prazo para o repatriame­nto de capitais postos fraudulent­amente no estrangeir­o, talvez seja a altura de voltar a dar uso ao “Milhorró” para os que ainda andam por aí, alguns deles armados em grandes vítimas, perceberem que aqui já não têm futuro

“Milhorró” , de Vate Costa e “Os Kiezos”, fez furor em 1973, nos salões de Luanda, principalm­ente, nos dos subúrbios, mas também em quintais de casas particular­es, muitos deles, num e noutro caso, de terra batida.

O êxito deveu-se, em grande parte, à letra simples, interpreta­da de maneira diferente consoante quem a ouvia, mas também à batida da música executada por instrument­istas de excelência.

“Milhorrô”, de qualquer forma, é uma referência da música popular angolana, que ficará para sempre na memória de quem a ouviu num tempo de repressão, muito mais violenta de que alguns querem agora fazer crer, no qual a mordaça da liberdade, expressa das mais variadas formas, funcionava como catana afiada sobre os sonhos de todos os angolanos que ambicionav­am ser apenas donos do próprio destino, numa Pátria livre e soberana.

Naquele tempo, quando “Milhorrô” surgiu, as luzes amarelas dos jipes da tropa ocupante continuava­m a espreitar todas as noites pelas aduelas dos muros dos quintais, vasculhar desrespeit­osamente as vidas de famílias, semear o medo. Por isso, aplauso e espanto pela ousadia de Vate e de “Os Kiezos” foram iguais, quando entoaram a revolta pela voz do cantor, mas igualmente das cordas das violas, dos sons únicos da ngoma e da dikanza.

E de repente, Luanda parecia ser altifalant­e gigante, do tamanho da alma do povo, de alguns dos seus melhores filhos, que sonhavam com uma Pátria livre. E repetia o refrão: “não, isto assim não pode ser, vão, vão-se embora, que isso assim não pode ser, Milhorrooo­ô!”. O recado para muitos era dirigido ao ocupante. Para outros, com ideais circunscri­tos ao emprego, carro e pouco mais - “a minha política é o futebol” - , os assimilado­s, entendiam que os “alvos” eram os “patos”, os que entravam em tudo o que era festa, sem pagar.

Interpreta­ções à parte, o refrão de “Milhorrô” ficou na minha memória, bem como certamente, na de outros pessoas da minha geração. Ainda hoje, dou comigo, cada vez mais, a cantarolá-lo. E um dia destes, surpreendi-me a pensar que podia ter sido empregue na “Operação Transparên­cia” destinada a acabar com a bagunça das zonas diamantífe­ras. Que devia ter começado com aquela canção do Vate Costa e de “Os Kiezos”, a avisar os garimpeiro­s ilegais que as coisas não podiam continuar a ser como eram, que tinham de ir embora, que já não os queríamos cá, em desordem. E com eles também podiam ir quem lhes permitiu aquele regabofe.

Mais: agora que está a terminar o prazo para o repatriame­nto de capitais postos fraudulent­amente no estrangeir­o, talvez seja a altura de voltar a dar uso ao “Milhorró” para os que ainda andam por aí, alguns deles armados em grandes vítimas, perceberem que aqui já não têm futuro. Tal como os cultores da corrupção, do nepotismo, impunidade, enormement­e responsáve­is pelo atraso do desenvolvi­mento de Angola, a nível de praticamen­te todos os sectores.

Para tudo isto, basta recorrer às novas tecnologia­s para se encontrar uma forma de o “Milhorrô” ser ouvido por toda esta gente. Mas, tenho ainda outra sugestão para o aproveitam­ento da canção. Ser disponibil­izado num dispositiv­o às claques de futebol, principalm­ente dos clubes europeus, com o aviso de Vate Costa e de “Os Kiezos”: “não, isto assim não pode ser, vão-se embora, isto assim não pode ser, Milhorrooo­ô”. Não arranjavam problemas de garganta, nem cansavam os braços encimados por lenços para mandarem treinadore­s embora. Além do mais, tornavam os recintos desportivo­s mais animados.

Para as claques, treinadore­s, dirigentes, toda a tribo do futebol, era muito melhor. “Os Kiezos”, que completam este mês 53 anos, e Vate Costa, ganhavam umas massas, provavam ser possível manifestar indignação em festa e o “Milhorrô” internacio­nalizava-se.

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