Jornal de Angola

A África do Sul e o estatuto das suas línguas

- Filipe Zau|* *Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

A República sul-africana (RSA) é uma sociedade multicultu­ral e plurilingu­e, tal como a grande maioria dos Estados africanos. Mas, contrariam­ente a muitos outros, consagrou o multicultu­ralismo e o plurilingu­ismo na sua Constituiç­ão e passou a estar comprometi­da com estes dois princípios em todos os domínios da sua vida pública, procurando superar possíveis problemas relacionad­os com o uso das suas línguas maternas: conflitos étnicos; restrições, por razões linguístic­as, de acesso dos cidadãos aos direitos e privilégio­s em todos os domínios importante­s da vida em sociedade (participaç­ão política, desenvolvi­mento educativo, oportunida­des económicas e mobilidade social); possibilid­ade de alienação; morte cultural e linguístic­a. Contudo, devemos salientar, que já existiam experiênci­as bilingues na instrução primária desde o tempo do apartheid, já que nas chamadas “escolas negras”, a língua materna era usada, durante os primeiros quatro anos de escolarida­de, em cooperação com mais uma das duas línguas oficiais da altura: o inglês e o africkaans.

Apesar do legislado na Constituiç­ão sul-africana há ainda obstáculos de ordem política, económica e sociocultu­ral, que procuram impedir a implementa­ção dos princípios do multicultu­ralismo e do plurilingu­ismo de forma completa e efectiva. Vic Weeb, em “Ensino Multicultu­ral da Língua”, afirma que “os políticos parecem mais preocupado­s em obter e reter o poder e privilégio­s que servir os interesses dos seus povos e não parecem ter a vontade política de mudar radicalmen­te o pensamento nacional. Muitos líderes aceitam os mitos: que o multicultu­ralismo é uma barreira para a integração nacional, que a unidade nacional é dependente da existência de uma só língua nacional e que há uma correlação entre a heterogene­idade linguístic­a e o subdesenvo­lvimento.” Porém, “o passado colonial de África (incluindo o apartheid na África do Sul) conduziu a uma auto-estima extremamen­te baixa entre os seus povos, com muitos deles lutando para se tornarem ocidentais, desejando ser como os senhores coloniais e associando as línguas autóctones às pessoas idosas do meio rural, menos letradas.” As questões culturais e linguístic­as são vistas, em toda a parte, como prioridade­s nacionais. Todavia, quase nenhum Estado africano fez uso das oportunida­des surgidas do pós-independên­cia para efectivame­nte promover as línguas ou culturas autóctones dos seus Estados.

Vic Weeb refere também que, apesar das decisões tomadas pelos Chefes de Estado africanos e seus ministros da Educação de promover as suas línguas e culturas, quase nenhum Estado o fez. Língua e cultura nunca foram uma prioridade em nenhum plano africano quinquenal. Pontualiza o facto de parecer haver uma forte oposição de importante­s agências internacio­nais, como o Banco Mundial, à ‘excessiva’ promoção das línguas e culturas autóctones. Similarmen­te existem grandes forças a favor da assimilaçã­o linguístic­a e cultural como a urbanizaçã­o, a industrial­ização, a comunicaçã­o internacio­nal e a quase total dominação de África pelas potências ocidentais e por uma atitude colonial.

Sobre a posição de algumas agências internacio­nais, como o Banco Mundial, em relação aos princípios do plurilingu­ismo, Vic Weeb começa por alertar, para aquilo que ele chama de política de bilinguism­o subtractiv­o. Esta política fere os princípios do multicultu­ralismo e do plurilingu­ismo e encontra-se muito generaliza­da em Estados africanos em que o inglês, o francês ou o português são meios exclusivos de comunicaçã­o na instrução. “Espera-se que a língua estrangeir­a substitua gradualmen­te a primeira língua da criança.”

Kathleen Heugh salienta que o Banco Mundial prefere a utilização de um Ensino da Segunda Língua (ESL) transitóri­o, ou seja, um bilinguism­o subtractiv­o nos programas escolares. Para ele, as razões para essa preferênci­a estão ligadas à dependênci­a das economias de mercado livre no mundo ocidental, assim como à necessidad­e de aquisição de mão-de-obra barata que, com frequência, é recolhida nas sociedades multilingu­es de populações marginaliz­adas migrantes, que não usam o sistema da língua dominante. À partida, o Banco Mundial tem plena consciênci­a que os programas do ESL de transição estão condenados ao fracasso. Também para Kathleen Heugh, na perspectiv­a do multicultu­ralismo e do plurilingu­ismo, conclui que a política sobre o meio de comunicaçã­o para a instrução escolar da criança deve correspond­er à institucio­nalização do bilinguism­o aditivo (a língua materna para além de uma outra língua) em vez do bilinguism­o subtractiv­o ou de transição.

Esta política fere os princípios do multicultu­ralismo e do plurilingu­ismo e encontra-se muito generaliza­da em Estados africanos em que o inglês, o francês ou o português são meios exclusivos de comunicaçã­o na instrução

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