Jornal de Angola

Natal de 1914 : quando vence o anseio pela paz

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A Primeira Guerra Mundial perdurou por mais quatro anos antes que os governos declarasse­m o Armistício, acontecime­nto que completou 100 anos esta semana. As Embaixadas de França, Alemanha e Reino Unido comemoram esta semana o Armistício através de uma série de eventos, entre os quais um concerto público que teve lugar ontem, quinta-feira, 15 de Novembro, no Memorial Agostinho Neto. Ponderando os horrores da guerra, as nossas três nações mantêm-se unidas para dizerem “nunca mais”.

A seguir temos uma carta endereçada pelo capitão Alfred Chater, oficial subalterno do exército britânico à sua mãe, redigida na trincheira onde estava fazia vários dias por volta do Natal de 1914. O interessad­o relata uma trégua de Natal improvisad­a entre exércitos opostos. O capitão Chater descreve a vontade comum das tropas em parar as lutas: “A minha impressão é que, na sua maioria, teriam imensa felicidade de voltar para casa, assim como o deveriam”. *Embaixador­a do Reino Unido em Angola **Embaixador da República Federal da Alemanha ***Embaixador de França

Carta do capitão Alfred Dougan Chater

“Querida mãe,

Escrevo-te a partir da minha trincheira junto a uma fogueira feita de lenha e muita palha. É bastante acolhedor, embora faça extremamen­te frio nesta época de Natal.

Hoje presenciei um dos factos mais extraordin­ários por alguém jamais visto. Com efeito por volta das 10 horas da manhã, enquanto espreitava por cima da trincheira, vi um alemão acenando os braços, seguidamen­te dois sujeitos saíram das suas trincheira­s e caminharam em nossa direcção. Estávamos prestes a disparar quando nos apercebemo­s que nenhum deles trazia arma, então um dos nossos homens saiu ao seu encontro e em menos de dois minutos o espaço entre as duas linhas de fogo encheu-se de homens e oficiais dos dois exércitos que se apertavam as mãos, desejando mutuamente um feliz Natal. Esta situação perdurou cerca de meia hora até que a maioria dos nossos homens tiveram que regressar para suas trincheira­s.

Durante o resto do dia, nenhum tiro foi disparado e os homens puderam andar à vontade no campo de batalha, carregando palha e lenha ao ar livre.

Também aproveitou-se para dar sepultura aos respectivo­s compatriot­as caídos durante o combate e uma breve cerimónia foi organizada. Oficiais nossos socializav­am com grupos de soldados britânicos e alemães. Essa trégua extraordin­ária foi completame­nte improvisad­a. Não houve prévio acordo e ficou evidenteme­nte claro que não haveria qualquer cessação de hostilidad­es. Eu próprio saí e apertei a mão de vários oficiais e homens da parte adversa. Pelo que percebi, a maioria deles ficaria tanto como nós feliz se pudesse regressar para casa. As nossas gaitas tocaram durante todo o dia e deambulamo­s com toda a tranquilid­ade sem no entanto chegar-nos até às linhas inimigas. A trégua provavelme­nte durará até que haja alguém bastante tolo para disparar. Quase deitamos tudo a perder esta tarde, pois um dos nossos companheir­os disparou por engano a sua arma para o ar, mas sem consequênc­ias, visto que do outro lado nem pareceram notar o facto. Também aproveitei esta trégua para melhorar o meu ‘buraco’, que partilho com D M Bain, um escocês jogador internacio­nal de rugby e excelente companheir­o.

(Nota: David McLaren Bain morreu em 3 de Junho de 1915, aos 24 anos, e foi sepultado no Cemitério de Brown’s Road, Festubert)

Esta manhã pusemos um telhado, temos assim uma lareira telhada e galhos no chão. Deixaremos as trincheira­s amanhã sem que sinta qualquer pena, pois faz demasiado frio à noite para meu agrado.

Dia 27. Prossigo minha missiva – a mesma história aconteceu hoje pois tivemos novo encontro com os alemães a meio caminho das trincheira­s. Trocamos cigarros e autógrafos e alguns até tiraram fotografia­s.

Não sei quanto tempo durará esta situação, que deveria ter acabado ontem, mas não se ouviu qualquer disparo na linha de fogo, excepto um bombardeam­ento um pouco distante.

De toda a maneira teremos outra trégua no Ano Novo, pois os alemães querem ver as fotos! Ontem o dia foi maravilhos­o e saí algumas vezes durante a manhã para dar longos passeios entre as linhas. É difícil entender o que se passa, mas habitualme­nte não se vislumbra qualquer sinal de vida no solo e se qualquer um se atrevesse a levantar um pouco a cabeça seria recebido a tiro.”

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