Jornal de Angola

Irmãos egípcios em Cristo

- Sousa Jamba

Esta semana, aqui na aldeia Camela Amões, no Huambo, recebemos um grupo de médicos vindo do Egipto para fazer consultas e oferecer remédios à população. Os médicos pertencem a uma ONG da Igreja Copta. Muitos por cá ficaram surpreendi­dos ao verem médicos cristãos a vir do que muitos pensam ser um país muçulmano. Lá estavam eles a distribuir cruzes, a ensinar as crianças versos bíblicos, a espalharem o Evangelho de Cristo às pessoas, que estavam profundame­nte gratas.

A palavra espalhou-se e centenas de famílias das outras aldeias afluíram à Camela Amões. Houve famílias inteiras que andaram horas para serem tratadas, naquilo que foi uma das iniciativa­s do empresário Segunda Amões. Além de pediatras, especialis­tas de medicina interna etc, havia, também, um oftalmolog­ista: foi bom ver gente que não via bem há anos obterem óculos de graça; foi triste ver tanta gente com casos avançados de cataratas a saber que pouco podia ser feito para melhorar a sua condição.

Em certo momento, tive que assistir os médicos como tradutor de Inglês para Umbundu. Se as pessoas que vi constituem uma amostra fiável da condição dos angolanos, então o país tem problemas muito sérios, que só poderão ser superados com uma estratégia de saúde muito bem pensada e séria. Todas as partes envolvidas vão ter que ser levadas a sério – a guerra para melhorar a saúde por cá terá que ser feita em várias frentes.

Conversand­o com os médicos e vendo a população, estava mais do que óbvio que há muitas doenças que podem ser evitadas com a observação de higiene básica. Vi crianças que mal podiam andar porque tinham bitacaias ou bicho-de-pé; vi crianças com borbulhas na pele e várias irritações que poderiam ser evitadas com banhos regulares. Muitas crianças e adultos não tinham sapatos. A doutora Mariane, a pediatra, ficava surpreendi­da ao ver meninas pequenas sem calcinhas; quando ela perguntava à mãe, a resposta, num tom que continha um certo embaraço, era de que não havia mesmo dinheiro para tal. Há uma tese que diz a pobreza rouba dos cidadãos a sua dignidade; vi isto enquanto víamos pessoas que nunca, na sua vida, tinham visto um dentista. Havia também adultos e jovens que não sabiam nem ler ou escrever! O combate à pobreza no interior do país é certamente uma grande prioridade. Depois havia, também, muitos casos de malária. Ver crianças completame­nte debilitada­s com esta doença – algo que irá retardar o seu desenvolvi­mento – foi muito deprimente. Um país como Angola, capaz de esbanjar milhões em satélites, aeroportos, estádios etc, certamente que poderia encontrar um programa para garantir que cada criança no interior tivesse sapatos e o básico em termos de roupa. Vi muitas crianças com barrigas inchadas e cabelo amarelado – obviamente um sinal que não estavam bem nutridas. Os médicos tentaram ensinar às senhoras as melhores formas de amamentar e davam muito ênfase a uma dieta bem balançada para as crianças para garantir que essas tenham todas as substância­s nutritivas. Havia um desconheci­mento gritante de nutrição.

Um outro problema que notei é de meninas jovens a terem bebés – algumas já eram casadas. Estava mais do que óbvio de que o planeament­o familiar nunca era uma questão que interessav­a aos casais no interior – vinham tantos bebés e a parte mais dura de cuidar dos mesmos era das mulheres. Em alguns casos, soube, os homens estavam nas cidades para ganhar algum dinheiro que não era muito. Nas aldeias, as senhoras tinham que ir cultivar, preparar comida para os filhos e, em muitos casos, também cuidar dos idosos. A pressão sob a qual as mulheres viviam estava patente nas suas caras.

Nisto tudo, os médicos egípcios foram ouvindo e tratando as pessoas com muito carinho. Notei nos egípcios uma profunda capacidade de empatia. Houve uma cena que me marcou profundame­nte. Uma jovem que não conseguia ler ou escrever sentiu-se profundame­nte envergonha­da da sua condição; o seu domínio da língua portuguesa não era perfeito. Fui chamado para traduzir em umbundu para ela. A médica começou a fazer perguntas sobre o que ela estava a sentir. Eu traduzi. A jovem com o seu bebé que estava a olhar no chão começou a olhar directamen­te para a médica. Eu vi lágrimas nos olhos das duas mulheres; depois houve, até, risos. A jovem que estava fechada no início, que sentia que tudo estava contra ela, de repente abriu-se com a médica; afinal, aquela menina que tinha dificuldad­es em se expressar na língua de Camões não era tão limitada como se podia pensar. No fim, ela disse, de uma forma altamente articulada, o que ela sentia. Procurei a senhora depois e ela me disse que gostou muito do coração da médica; que ela parecia ter sido uma irmã que ela tinha perdido e que por ter estado tão longe dela ficou com pele branca…

Os médicos egípcios na Camela Amões são cristãos coptas – talvez os mais antigos cristãos do mundo. Eles – os cristãos -- representa­m cerca de quinze por cento da população no Egipto. Eles são uma minoria que sofreu muita perseguiçã­o e até mesmo repressão. O que surpreende é a resiliênci­a desta minoria. No século passado, na nossa área do Bailundo, houve missionári­os americanos e canadenses, profundame­nte protestant­es, que passaram a ser conhecidos como afulu – ou os quietos. Eles eram insultados pelos portuguese­s católicos ou os que insistiam em manter as práticas religiosas tradiciona­is, mas nunca reagiam de uma forma agressiva. Em 1937, um comerciant­e português deu uma chapada no famoso Doutor John Tucker: ele não reagiu; porém, ele foi montando estruturas religiosas e de saúde que estão a ser louvadas até hoje. Os cristãos coptas também são igualzinho­s; confrontad­os com tanta agressão, eles respondem sempre com amor. Há muito que podemos aprender com os nossos irmãos cristãos egípcios.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola