Viúva de Iko Carreira lamenta esquecimento
Os 43 anos passados sobre a Independência Nacional ainda repercutem. É neste espírito que se enquadra a conversa com Maria Helena Diniz, que, a ser guia o nome, é cidadã anónima. Mas a ideia muda assim que se lhe junta o apelido Carreira, adquirido pelo casamento com o comandante Iko Carreira, cujo papel na Luta de Libertação Nacional foi relevante. Tia Bucha, como é tratada por quem lhe é íntimo, tem memória de momentos da luta que conduziu o país à independência, na qual esteve envolvida. A entrevistada, que chegou ao grau militar de coronel, reservou-se ao direito de não responder a algumas perguntas, mas ainda assim a conversa atende às expectativas. Considera, por exemplo, que “o País tem uma falta de memória histórica generalizada” Onde e com quem estava no dia 11 de Novembro de 1975, por altura da proclamação da Independência Nacional?
Em Luanda, na nossa casa, com a minha mãe e o nosso filho Kwenya, que, no dia seguinte, faria um ano. O Iko estava com o Presidente Neto, na Praça da Independência. Vou contar, em primeira mão, uma história
engraçada. Quando, durante as negociações de Alvor, se discutia a escolha da data da Independência, o Presidente Neto perguntou ao Iko em que dia o Kwenya havia nascido e propôs que esse (12 de Novembro) seria o dia da Independência. Aí o Holden, apoiado por Savimbi, achou que melhor seria a 11, talvez por ser a data do fim da Primeira Guerra Mundial. Achei a ideia do Presidente Neto muito carinhosa, pois foi ele quem
me acompanhou à maternidade em Lusaka, para que pudesse dar à luz.
Qual foi o sentimento naquele momento. Dever cumprido?
Ao ouvir as palavras do Presidente Neto, disse para a minha mãe que tinha valido a pena tanta luta e tanto sacrifício.
Quem eram as suas companheiras de arma e trincheira, se assim podemos considerar?
Lembro-me, principalmente, da Ruth Neto e da Fela Onambwe, que foram as companheiras com quem abri o campo de mulheres na Zona da Lupa, na Frente Leste, em homenagem a Deolinda Rodrigues. Estavam já lá duas camaradas, que eram as esposas dos Camaradas Mbidi Emílio e Armando Ndembo. Elas haviam feito uma enorme lavra de mandioca e batatadoce para nos receberem. Hoje, isso pode parecer irrelevante, mas é preciso compreender a situação de grande carência alimentar que nos atingia a todos. Claro que há outras camaradas, como a Guida Diandengue, a Odete Ngakumona e muitas outras.
Não vos pareceu uma “aventura”?
Não foi uma aventura. Foi um acto consciente e determinado, motivado pelo interesse em participar na Luta de Libertação Nacional.
Hoje, sente que valeu a pena envolver-se na Luta de Libertação Nacional?
Claro que sim. Além da independência, o objectivo era acabar com as injustiças, com a exploração do homem pelo homem.
Adquiriu o apelido Carreira, por conta da relação com o Comandante Iko. Quando, onde e em que circunstâncias conheceu Iko Carreira?
Isso é uma longa história. Com o meu pai, aprendi que um dia Angola seria independente. E foi através dele que conheci o Iko, em Luanda, em 1960. Ele estava em Portugal, na Força Aérea Portuguesa, e veio a Angola fazer contactos políticos. Aproveitou essa estadia para visitar o meu pai, que havia conhecido em Coimbra e com quem estava em sintonia política.
Quem convenceu quem a abraçar o movimento da Luta de Libertação Nacional?
Quando conheci o Iko, ele já estava envolvido na luta política pela independência. Como disse, o meu pai também era favorável à Independência. Naturalmente, isso aproximou-nos.
Que tipo de relação existia entre Iko Carreira e Agostinho Neto?
O Iko era um profundo admirador do Presidente Neto. Ele desertou em 1961, na famosa “Fuga dos 100”. Nessa altura já pertencia ao MPLA. Em 1962, ele passou a fazer parte do Comité Director e, como tal, era um colaborador próximo do Presidente Neto. Certamente, houve, nessa longa trajectória de camaradagem, bons e maus momentos, mas não foi por acaso que ele foi escolhido para ser o Ministro da Defesa do primeiro Governo de Angola independente.
Em termos militares, como era este Ministro da Defesa do primeiro Governo de Angola Independente?
O Iko foi o único africano graduado pela Academia Voroshilov, que era a escola de guerra mais importante da União Soviética. Isso foi um projecto do tempo ainda do Presidente Neto, que pediu a Brejnev (NR: antigo Presidente da União Soviética) que o Iko fosse admitido, mas foi concretizado apenas depois da sua morte. O Iko pensava que isso era muito importante para a melhoria organizativa das FAPLA. Ele foi
o melhor aluno do curso e só não recebeu a medalha de ouro porque estas estavam reservadas aos generais dos países membros do Pacto de Varsóvia.
Todo o sacrifício pressupõe um benefício. Sente-se, materialmente, recompensada por esta Angola que ajudou a libertar?
Não participei na luta para ter benefícios materiais. Lembro que, naquelas circunstâncias, nunca sabíamos o que seria o dia seguinte. Os riscos eram grandes. Quando me separava do Iko, porque ele ia para uma missão, nunca sabia se voltaria a vêlo. Muitos camaradas tombaram durante a luta.
O projecto de Nação idealizado na altura previa como resultado a Angola de hoje?
A construção da Nação é um processo longo e nós apenas temos 43 anos de Independência.
Terá o País falhado nalgum momento da sua edificação?
Muitos dos erros que hoje reconhecemos devem ser atribuídos principalmente à falta de experiência na condução da luta e do país. Com mais e melhor investimento em saúde e educação, Angola tem condições para viver um futuro risonho.
Sente ódio de alguém ou viveu alguma situação, que, por razões políticas, criou constrangimento à sua vida?
Um camarada não faz esta caminhada com sentimento de ódio, mas por amor a uma causa. Porém, sinto que o país tem uma falta de memória histórica generalizada.
O que dizer da situação dos antigos combatentes e veteranos da pátria, muitos deles com patentes e regalias contrárias ao contributo que deram?
As regalias não devem ser o que mais conta. Cada um deve viver de acordo com a sua consciência. Há sempre um tempo certo para serem corrigidas as injustiças que possam ter acontecido.
Tem o grau militar de Coronel. Sente-se satisfeita?
No nosso país há a tendência para dar mais estrelas aos homens do que às mulheres.
Durante o tempo em que José Eduardo dos Santos esteve como Presidente, alguma vez teve uma conversa com ele?
Sim! Logo depois da morte do Iko.
O que conversaram?
O Presidente José Eduardo dos Santos disse-me que eu e os meus filhos não estaríamos sozinhos, pois teríamos sempre o apoio do Governo e dele próprio.
O que espera de Angola, nos próximos dez anos?
Com o novo ambiente político protagonizado pelo Presidente João Lourenço, acredito que o país dará passos importantes, que terão efeitos mais cedo ou mais tarde.
No conjunto dos combatentes da libertação alguém a terá marcado, para além do seu marido, obviamente?
Há, sim! O Comandante Kwenya, que, sem instrução académica ou militar, organizou os seus homens e atacou com sucesso posições inimigas, capturando armas e fardamento, na zona D da III região, entre Mavinga e Cuito Canavale.
“O Iko era um profundo admirador do Presidente Neto. Ele desertou em 1961, na famosa “Fuga dos 100”. Nessa altura já pertencia ao MPLA. Em 1962, ele passou a fazer parte do Comité Director e, como tal, era um colaborador próximo do Presidente Neto”