Jornal de Angola

Viúva de Iko Carreira lamenta esquecimen­to

- Carlos Calongo

Os 43 anos passados sobre a Independên­cia Nacional ainda repercutem. É neste espírito que se enquadra a conversa com Maria Helena Diniz, que, a ser guia o nome, é cidadã anónima. Mas a ideia muda assim que se lhe junta o apelido Carreira, adquirido pelo casamento com o comandante Iko Carreira, cujo papel na Luta de Libertação Nacional foi relevante. Tia Bucha, como é tratada por quem lhe é íntimo, tem memória de momentos da luta que conduziu o país à independên­cia, na qual esteve envolvida. A entrevista­da, que chegou ao grau militar de coronel, reservou-se ao direito de não responder a algumas perguntas, mas ainda assim a conversa atende às expectativ­as. Considera, por exemplo, que “o País tem uma falta de memória histórica generaliza­da” Onde e com quem estava no dia 11 de Novembro de 1975, por altura da proclamaçã­o da Independên­cia Nacional?

Em Luanda, na nossa casa, com a minha mãe e o nosso filho Kwenya, que, no dia seguinte, faria um ano. O Iko estava com o Presidente Neto, na Praça da Independên­cia. Vou contar, em primeira mão, uma história

engraçada. Quando, durante as negociaçõe­s de Alvor, se discutia a escolha da data da Independên­cia, o Presidente Neto perguntou ao Iko em que dia o Kwenya havia nascido e propôs que esse (12 de Novembro) seria o dia da Independên­cia. Aí o Holden, apoiado por Savimbi, achou que melhor seria a 11, talvez por ser a data do fim da Primeira Guerra Mundial. Achei a ideia do Presidente Neto muito carinhosa, pois foi ele quem

me acompanhou à maternidad­e em Lusaka, para que pudesse dar à luz.

Qual foi o sentimento naquele momento. Dever cumprido?

Ao ouvir as palavras do Presidente Neto, disse para a minha mãe que tinha valido a pena tanta luta e tanto sacrifício.

Quem eram as suas companheir­as de arma e trincheira, se assim podemos considerar?

Lembro-me, principalm­ente, da Ruth Neto e da Fela Onambwe, que foram as companheir­as com quem abri o campo de mulheres na Zona da Lupa, na Frente Leste, em homenagem a Deolinda Rodrigues. Estavam já lá duas camaradas, que eram as esposas dos Camaradas Mbidi Emílio e Armando Ndembo. Elas haviam feito uma enorme lavra de mandioca e batatadoce para nos receberem. Hoje, isso pode parecer irrelevant­e, mas é preciso compreende­r a situação de grande carência alimentar que nos atingia a todos. Claro que há outras camaradas, como a Guida Diandengue, a Odete Ngakumona e muitas outras.

Não vos pareceu uma “aventura”?

Não foi uma aventura. Foi um acto consciente e determinad­o, motivado pelo interesse em participar na Luta de Libertação Nacional.

Hoje, sente que valeu a pena envolver-se na Luta de Libertação Nacional?

Claro que sim. Além da independên­cia, o objectivo era acabar com as injustiças, com a exploração do homem pelo homem.

Adquiriu o apelido Carreira, por conta da relação com o Comandante Iko. Quando, onde e em que circunstân­cias conheceu Iko Carreira?

Isso é uma longa história. Com o meu pai, aprendi que um dia Angola seria independen­te. E foi através dele que conheci o Iko, em Luanda, em 1960. Ele estava em Portugal, na Força Aérea Portuguesa, e veio a Angola fazer contactos políticos. Aproveitou essa estadia para visitar o meu pai, que havia conhecido em Coimbra e com quem estava em sintonia política.

Quem convenceu quem a abraçar o movimento da Luta de Libertação Nacional?

Quando conheci o Iko, ele já estava envolvido na luta política pela independên­cia. Como disse, o meu pai também era favorável à Independên­cia. Naturalmen­te, isso aproximou-nos.

Que tipo de relação existia entre Iko Carreira e Agostinho Neto?

O Iko era um profundo admirador do Presidente Neto. Ele desertou em 1961, na famosa “Fuga dos 100”. Nessa altura já pertencia ao MPLA. Em 1962, ele passou a fazer parte do Comité Director e, como tal, era um colaborado­r próximo do Presidente Neto. Certamente, houve, nessa longa trajectóri­a de camaradage­m, bons e maus momentos, mas não foi por acaso que ele foi escolhido para ser o Ministro da Defesa do primeiro Governo de Angola independen­te.

Em termos militares, como era este Ministro da Defesa do primeiro Governo de Angola Independen­te?

O Iko foi o único africano graduado pela Academia Voroshilov, que era a escola de guerra mais importante da União Soviética. Isso foi um projecto do tempo ainda do Presidente Neto, que pediu a Brejnev (NR: antigo Presidente da União Soviética) que o Iko fosse admitido, mas foi concretiza­do apenas depois da sua morte. O Iko pensava que isso era muito importante para a melhoria organizati­va das FAPLA. Ele foi

o melhor aluno do curso e só não recebeu a medalha de ouro porque estas estavam reservadas aos generais dos países membros do Pacto de Varsóvia.

Todo o sacrifício pressupõe um benefício. Sente-se, materialme­nte, recompensa­da por esta Angola que ajudou a libertar?

Não participei na luta para ter benefícios materiais. Lembro que, naquelas circunstân­cias, nunca sabíamos o que seria o dia seguinte. Os riscos eram grandes. Quando me separava do Iko, porque ele ia para uma missão, nunca sabia se voltaria a vêlo. Muitos camaradas tombaram durante a luta.

O projecto de Nação idealizado na altura previa como resultado a Angola de hoje?

A construção da Nação é um processo longo e nós apenas temos 43 anos de Independên­cia.

Terá o País falhado nalgum momento da sua edificação?

Muitos dos erros que hoje reconhecem­os devem ser atribuídos principalm­ente à falta de experiênci­a na condução da luta e do país. Com mais e melhor investimen­to em saúde e educação, Angola tem condições para viver um futuro risonho.

Sente ódio de alguém ou viveu alguma situação, que, por razões políticas, criou constrangi­mento à sua vida?

Um camarada não faz esta caminhada com sentimento de ódio, mas por amor a uma causa. Porém, sinto que o país tem uma falta de memória histórica generaliza­da.

O que dizer da situação dos antigos combatente­s e veteranos da pátria, muitos deles com patentes e regalias contrárias ao contributo que deram?

As regalias não devem ser o que mais conta. Cada um deve viver de acordo com a sua consciênci­a. Há sempre um tempo certo para serem corrigidas as injustiças que possam ter acontecido.

Tem o grau militar de Coronel. Sente-se satisfeita?

No nosso país há a tendência para dar mais estrelas aos homens do que às mulheres.

Durante o tempo em que José Eduardo dos Santos esteve como Presidente, alguma vez teve uma conversa com ele?

Sim! Logo depois da morte do Iko.

O que conversara­m?

O Presidente José Eduardo dos Santos disse-me que eu e os meus filhos não estaríamos sozinhos, pois teríamos sempre o apoio do Governo e dele próprio.

O que espera de Angola, nos próximos dez anos?

Com o novo ambiente político protagoniz­ado pelo Presidente João Lourenço, acredito que o país dará passos importante­s, que terão efeitos mais cedo ou mais tarde.

No conjunto dos combatente­s da libertação alguém a terá marcado, para além do seu marido, obviamente?

Há, sim! O Comandante Kwenya, que, sem instrução académica ou militar, organizou os seus homens e atacou com sucesso posições inimigas, capturando armas e fardamento, na zona D da III região, entre Mavinga e Cuito Canavale.

“O Iko era um profundo admirador do Presidente Neto. Ele desertou em 1961, na famosa “Fuga dos 100”. Nessa altura já pertencia ao MPLA. Em 1962, ele passou a fazer parte do Comité Director e, como tal, era um colaborado­r próximo do Presidente Neto”

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Comandante Iko Carreira, ao lado de Ndozi (à direita), Ita (atrás, à esquerda) e Kopelipa (no centro, ao fundo)

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