Do inferno ao céu
Médio croata forjou o talento entre os destroços da guerra nos Balcãs e chegou este ano ao topo do futebol mundial, interrompendo o duopólio de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, nos prémios de melhor do mundo
Para Luka Modric, aqueles jogos de futebol no parque de estacionamento do hotel Kolovare, no intervalo dos sons de granadas e morteiros, não passam já de uma memória longínqua. Mas uma memória difícil de apagar, conta a reportagem do Diário de Notícias.
Foi ali, em tempos de guerra (início da década de 1990), numa cidade croata de Zadar, sob o fogo das forças sérvias, que o pequeno Modric forjou o talento que o levaria até ao topo do mundo. Até à Bola de Ouro, o mais prestigiado galardão a eleger o Melhor Jogador do planeta a cada ano. Em 2018, o melhor foi Luka Modric, o croata que saiu do inferno para tocar o céu.
O anúncio da revista “France Football”, divulgado na noite de segunda-feira, já trazia pouco “suspense” associado. Não só pelo facto de a meio da tarde ter começado a circular nas redes sociais a imagem de uma folha com a classificação final que viria a revelar-se exacta, como sobretudo pelos indicadores que antecediam a gala.
Modric, o melhor herdeiro do legado histórico do “n.º 10” no futebol moderno, foi o pequeno génio da selecção croata que chegou pela primeira vez à final de um Mundial de futebol (que perdeu para a França, país da revista organizadora do prémio), deu um toque distintivo ao meio-campo do Real Madrid, que se sagrou campeão europeu e tinha ganho já, este ano, o prémio de Melhor do Mundo para a FIFA, o The Best, bem como o de melhor jogador da temporada para a UEFA.
A Bola de Ouro permitelhe completar o leque de títulos anuais e romper mesmo, de forma expressiva, o duopólio que Cristiano Ronaldo e Lionel Messi vinham mantendo no futebol mundial na última década. O português voltou a ser o segundo classificado nesta votação, tal como na da FIFA, a quase 300 pontos do croata, mas o argentino nem ao pódio foi, tendo de contentar-se com o quinto lugar. Infância como refugiado O “10” moderno, que tanto cria o jogo, com toque de génio, como marca o adversário com o espírito combativo de um sobrevivente, costuma ser reservado sobre a sua infância.
"Revisitar o passado não leva a nada", dizia há dez anos ao jornal britânico “Telegraph”, quando chegou a Londres, para representar o Tottenham, que por ele bateu, na altura, o seu recorde de transferências (pagou um pouco mais de 20 milhões de euros ao Dínamo de Zagreb).
Talvez tenha razão. Mas talvez também o seu passado seja fundamental para contextualizar as façanhas de um médio de figura frágil, mas tão resistente quanto os mais durões. Um jogador capaz de desenhar soluções requintadas nos cenários mais exigentes, um criativo que consegue ser genial sob pressão, um artista que não perdeu o espírito solidário.
“A guerra fez-me mais forte. Não quero arrastar isso comigo para sempre, mas também não é algo que eu queira esquecer”, disse Luka Modric noutra ocasião.
No Inverno de 1991, o pequeno Luka tinha apenas seis anos, quando a dura realidade da guerra dos Balcãs deixou-lhe a vida de pernas para o ar. A limpeza étnica posta em marcha pelas forças sérvias naquela região da Dalmácia bateu de forma trágica à porta de Modric, levandolhe o avô, com o nome do qual tinha sido baptizado e com quem passava a maior parte do tempo, na aldeia de Zaton Obrovacki, nas encostas das montanhas Velebit, a maior cordilheira croata. Um ataque de um grupo pró-sérvio matou sete anciãos na aldeia, entre eles o pastor Luka, o avô de Modric.
A partir daquele dia, iniciou-se uma vida de refugiado para Luka, que teve de fugir com a mãe, Jasminka, e a irmã mais nova, Jasmine, para Zadar - enquanto o pai, Stipe, alistou-se para combater no exército croata. Ali, naquela cidade portuária junto ao Adriático, viveram vários anos refugiados em hotéis, com Modric e as restantes crianças a encontrarem nos jogos de futebol organizados entre os destroços a distracção possível em tempos de guerra. Franzino vingou no Dínamo Foram os empregados do hotel Kolovare quem primeiro reparou na habilidade invulgar do pequeno Luka com uma bola de futebol. E convenceram os responsáveis da equipa local, o NK Zadar, a levá-lo para as escolas do clube.
“Aos 7 ou 8 anos, ele pegava na bola e fazia malabarismos que só os de 20 conseguiam fazer”, recordou Svetko Custic, presidente do clube, à imprensa espanhola, depois de Modric ter conquistado o prémio The Best, da FIFA.
O aspecto franzino, contudo, levou-o a ser rejeitado mais tarde no seu clube do coração, o Hajduk Split, e isso quase o fez desistir. Valeulhe Tomislav Basic, treinador das camadas jovens do NK Zadar, que não desistiu de fazer evoluir o pequeno Luka. Ainda hoje, Modric lembra a influência de Basic na sua carreira. O certo é que, pouco depois, o médio chegou ao Dínamo de Zagreb, em 2002, e viu abertas as portas até ao topo da pirâmide do futebol croata.
Depois de dois empréstimos consecutivos, primeiro aos bósnios do Zrinjski Mostar e depois aos croatas do Inter Zapresic, Modric afirmou-se em definitivo como a nova jóia do meio-campo do Dínamo de Zagreb, com o qual conquistou três campeonatos croatas, duas Taças da Croácia e uma Supertaça, com 31 golos e 29 assistências durante esse período.