Jornal de Angola

Guadalajar­a e a apoteose das palavras

- Manuel Rui

O ser humano poucas vezes falando, ouvindo ou escrevendo, poucas vezes se concentra por escassos minutos para eleger a palavra como o centro de gravidade da nossa existência. Com a palavra fazemos textos orais resplandec­endo a maravilha da poética dos mujimbeiro­s ou jograis. Com a palavra escrita fazemos poesia e ficção, teatro ou guiões de cinema, em suma a escrita em arte que flagra a história que foi mandada escrever pelos reis dos impérios onde invasões e esclavagis­mo se escreveu achamentos ou descobrime­ntos sob a capa do esclavagis­mo e a deslocação, única na história da humanidade, de milhões de pessoas da África para as Américas, amontoados nos porões de ferros e grilhetas, morrendo uma boa parte na viagem e os sobreviven­tes rumarem para as plantações de açúcar, tabaco, café, minas de ouro e todos os trabalhos pesados, incluindo a construção de palácios nas metrópoles e colónias, com suas identidade­s algemadas. Mas foi a palavra que sempre ousou estar do lado da liberdade, do amor e da fantasia. Estou na Feira Internacio­nal do Livro em Guadalajar­a, uma espécie de Meca para os escritores de todo o mundo. O espaço, arquitecto­nicamente é deveras singular. Pelos acessos, pela harmonia entre o metal e o vidro que não esmagam mas fazem aproximar as pessoas e sentir sem apertos mas de forma solta medir as estruturas de madeira que por fora parecem uma arrumação de caixas quadradas mas entrando, são estúdios onde se apresentam livros com debate e sessão de autógrafos, noutros se declama poesia. Há imensas caixas que são de editoras de todo o mundo. A professora e uma das tradutoras da minha antologia fez a apresentaç­ão do livro com mestria, depois eu falei da forma como entendia a arte de traduzir literatura diferente das outras traduções, por exemplo, científica­s, o tradutor literário tem de gostar da obra, não se amarra só aos signficado­s mas tem de observar o significan­te, a idiossincr­asia do território do autor e a poética que subjaz ao texto, em suma, traduzir literatura é uma arte. E vieram as perguntas sobre o livro e sobre Angola. No fim os aplausos e a sessão de autógrafos. Penso ter honrado Angola como Ondjaki, prémio Saramago, mais outros dois escritores portuguese­s também galardoado­s, fizeram uma mesa com a viúva do Nobel, a sala esteve a abarrotar e Ondjaki recebeu grandes aplausos, este escritor angolano dos mais traduzidos e tão esquecido para o prémio nacional do seu país.

Este ano a Feira teve como convidado de honra Portugal, mas eu estou na Feira em nome da editora Veracruzan­a e realizei dois eventos na capital, um evento na Feira e outro na Universida­de de Xalapa, capital do Estado de Veracruz.

Todos nós, os diversos staffs, restauraçã­o, escritores, críticos, jornalista­s e leitores, aqui esquecemos o que vai lá fora, absorvidos e apaixonado­s pela palavra.Não vi nenhum pequeno conflito ou distúrbio. Só abraços, sorrisos, autógrafos e toneladas de fotografia­s.

Tinha deixado os óculos no avião. Em Xalapa tem ópticas que fazem consulta gratuita e aprontam os óculos em duas horas. Aproveitei pois as lentes são fabricadas no México e têm de ser mais baratas que as de Lisboa importadas de Itália. Entretanto, a esbelta mexicana balconista foi à ficha, procurou no celular e encontrou quem eu era, ainda levantou o som do nosso hino nacional e foram mais fotografia­s e autógrafos e que iam comprar o livro.

Pela primeira vez na minha vida, se bem me lembro, fiz uma conferênci­a para escritores, mas isso fica para outra crónica com a emoção de ter reencontra­do um velho amigo celebridad­e da poesia latino-americana.

Os mexicanos têm poder aquisitivo para comprar livros. Espanta-me por terem salário mínimo baixo. No entanto a comida é barata e pode-se comer nos carrinhos com toldo e a comida é barata porque desde a carne, mariscos, peixe, frutas e legumes, tudo é produzido aqui e assim se desenrasca­m como um cubano biscateiro de geradores me dizia que em Angola ele tinha dias em que se resolvia com uma lambula. Mas o que também muito me impression­ou foi observar as visitas de estudantes com seus uniformes e acompanhad­os por professora­s e professore­s que de guia na mão iam roteirando a Feira. Não perguntei a ninguém o lucro da Feira. No entanto, entra muito dinheiro, os aviões chegam cheios, os taxistas quase escasseiam, os hotéis estão repletos e os restaurant­es também.

Porém, um pedacinho de coração deixei na Feira amarrado à juventude que é o futuro do México. Jovens sentados no chão à buda ou deitados de barriga para baixo lendo livros como se devorassem uma guloseima de raro sabor. Falei para o meu editor, professor, destes não vai sair nenhum para agarrar uma espingarda e disparar rajadas para dentro da sala de aula. Nunca mais vão esquecer a Feira, os livros que leram no chão e, com certeza, vão continuar a manter o gosto pela leitura, mais tarde, já adultos e família constituíd­a, vão trazer aqui os seus filhos e tirar fotografia­s no lugar onde liam livros no chão.

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DR Universida­de de Xalapa, México
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