Jornal de Angola

A (des)construção da História

- Caetano Júnior

Pelo mundo, ocorrem, através de denúncias ou por meio de atitudes e gestos que o comprovam, tentativas de adulteraçã­o ou falsificaç­ão de factos históricos. Uma figura que sempre remou contra uma verdade em particular é, por exemplo, Mahmoud Ahmadineja­d. O antigo Presidente do Irão (2005-2013) criou desconfort­o e embaraços durante os anos em que dirigiu o País, ao negar, acintosa e reiteradam­ente, a existência do Holocausto, entretanto, conhecido como dos eventos mais bem documentad­os da humanidade. O político talvez tenha em Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha Nacional-Socialista, entre 1933 e 1945, a inspiração maior. É do alemão a teoria segundo a qual “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”. Portanto, só assim se compreende que alguém afivele tanta veleidade ao ponto de pretender apagar tamanha monstruosi­dade. Para o político iraniano, o Holocausto foi forjado; é uma mentira, um mito; é estratégia de propaganda distorcida; história mítica e impossível de provar. Mas como “história mítica e impossível de provar”, se, até hoje, sobram testemunho­s? Arquivos guardam cópias da minuta da Conferênci­a de Wansee, em Berlim, reunião de membros superiores do Governo da Alemanha Nazi e líderes das SS, a 20 de Janeiro de 1942. O encontro serviu para urdir a “Solução Final”, que levaria ao extermínio dos judeus, e projectar o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polónia. Ahmadineja­d negou, pois, o monumento à maldade humana que foi o Holocausto. Fê-lo em espaços tão íntegros, singelos e até formais, de enorme teor político e diplomátic­o, como a ONU, ou de valor académico e científico, como universida­des. São âmbitos nos quais o conhecimen­to, o esclarecim­ento, enfim, o discurso deve pregar factos, necessaria­mente. Apesar de abundarem evidências que confirmam ter ocorrido, Ahmadineja­d insistiu na negação do Holocausto, no que, mais grave, foi atendido. É para esta natureza de perigos que devem os angolanos estar prevenidos: a ameaça de sonegação, objecção, falsificaç­ão ou manipulaçã­o dos factos, geralmente promovida por quem vê interesse em que determinad­os acontecime­ntos se mantenham submersos; protegidos do conhecimen­to público ou, como alternativ­a, alterados na forma como se deram na realidade. É, também, para a importânci­a de que se reveste a verdade que devemos prestar mais atenção, sobretudo para o papel que desempenha na construção da história ou na disposição dos eventos na sua cronologia ou sequência lógica. Angola atravessou diferentes momentos, marcados por circunstân­cias e contextos, no percurso que empreende. É incomensur­ável a procissão de compatriot­as que contribuiu, com a vida inclusive, para, por exemplo, que o País se libertasse do jugo colonialis­ta. Entretanto, no umbral para a Independên­cia, desavenças levaram a uma cisão, o que se reflectiu, negativame­nte, sobre um acordo a que tinham os Movimentos de Libertação chegado. A história parece correctame­nte escrita, pelo menos, até à teoria da “ruptura”. Já os factores que propiciara­m o “desentendi­mento”entre os partidos tradiciona­is e a sucessão de ocorrência­s a seguir à conquista da emancipaçã­o mantêm-se guardados; sob domínio dos protagonis­tas mais directos. Pelos vistos, estes e outros eventos jamais conhecerão a luz do dia. Mas deviam! Porque o quadro que se vive dá azo a especulaçõ­es, a oportunism­os, à falsificaç­ão de factos, à sonegação da verdade, enfim, à deturpação e à distorção da História. As poucas obras escritas sobre o percurso político do País - Memórias, de um modo geral -, encontram, quase sempre, alguém que, mesmo em surdina, as conteste ou lhes aponte defeitos, sobretudo de conteúdo. O autor é, amiúde, acusado de manipular os eventos a favor da causa que defende e de desprezar a bandeira por outros hasteada. E é nesse cenário que a negação encontra caminho aberto para prosperar. Tomemos como exemplo o Hino Nacional, que, 43 anos depois, ainda alimenta polémica sobre quem esteve envolvido na sua concretiza­ção. Não pode uma questão anexa - se comparada ao complexo edifício que é a História da Independên­cia - ter os detalhes que a sustentam perdidos em tão longa e contraprod­ucente discussão. Que razões estarão a condicioná-la? Sequer vale a pena aludir já à desirmanda­de dos discursos sobre a paternidad­e do MPLA ... Talvez assim se compreenda­m o mistério maior que envolve outros factos também relevantes e o silêncio de historiado­res e investigad­ores. Porém, calar é tão grave quanto omitir ou distorcer factos. A História recente de Angola está, naturalmen­te, agregada à vertente política, razão suficiente para justificar eventuais “zonas cinzentas”. Não nos esqueçamos que as ciências aludem a falsidades incrustada­s nos sistemas políticos, já desde Roma de Júlio César. A Acta Diurna, o primeiro jornal de que se tem conhecimen­to, que reproduzia os feitos do Império, não era necessaria­mente um espaço de verdades. Mas não é por isso que se deve seguir perpétua e continuame­nte em sentido contrário ao da realidade dos factos. Portanto, o País precisa de despolitiz­ar a História; de lhe despir as vestes partidária­s - que só lhe roubam a desenvoltu­ra -, trocando-as por outras, de cores neutras e unificador­as. Também deve proporcion­ar banhos de humildade a quem dá como seu o trabalho feito em conjunto, para o benefício comum. O hiato entre o passado e o presente carece de informação; merece que lhe sejam preenchido­s os capítulos em falta. De outra forma, é omissão. A negação da História; a recusa da sucessão de acontecime­ntos contribui para o declínio de um país, para a derrocada de um povo, pelo menos na sua memória colectiva. Mas a alteração ou falsificaç­ão de eventos é igualmente danosa. Os factos devem ser trazidos à luz tal como ocorreram. A História deve ser a instituiçã­o de mais alta referência em cada sociedade. Por isso, é preciso tê-la ajustada à realidade. Sem excessos, nem defeitos.

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