Jornal de Angola

Marítimos e estudantes africanos em projecto associativ­ista

- Filipe Zau * * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Os 64 anos da aprovação dos Estatutos do Clube Marítimo Africano irão comemorar-se no próximo dia 20 de Dezembro.

Como filho de marítimo, que muito me honra ser, fascinou-me, desde sempre, as crónicas de viagem narradas à mesa em ambiente familiar, os brinquedos, que felizmente recebi, vindos de outras paragens, o sentido de liberdade face à mundividên­cia alcançada: da rota de África para o Oriente longínquo; da rota da Europa para a América do Norte, para a América Latina e para a América do Sul; de Lisboa para a pesca do bacalhau na Terra Nova... viagens de três, quatro, cinco, seis meses sem vir a casa… um ano, no caso dos navios petroleiro­s liberianos. Quanta experiênci­a de vida? Quantos mares e oceanos navegados? Quantos mundos, de um só mundo? No fundo, toda uma aprendizag­em por ensaio e erro através da “universida­de” da vida.

Foi com surpresa e alegria que revivi as minhas visitas ao Clube Marítimo Africano, sedeado, em Lisboa, na Rua da Nossa Senhora da Graça e que se encontram relatadas na obra de Edmundo Rocha, «Contribuiç­ão ao Estudo do Nacionalis­mo Moderno Angolano (período de 19501964) – Testemunho e Estudo Documental» Prémio de Investigaç­ão em Ciências Sociais e Humanas. De acordo com a minha memória visual e as histórias que me eram permitidas ouvir, fiz no Museu da República e da Resistênci­a em Lisboa a seguinte alocução, no lançamento do opúsculo «O Clube Marítimo Africano», também da autoria de Edmundo Rocha:

“Da minha infância, e de outros filhos de marítimos, alguns mais velhos que eu, fica a recordação daquele salão grande de cadeiras de madeira à volta, com a grafonola de dar à manivela e mudar de agulha a cada disco, que o tio Nicolau Facatina trouxe da viagem da América. Mais tarde o ‘pick up’, que o tio André trouxe de viagem da Alemanha, onde os discos iam caindo e tocando um de cada vez...; Discos de massa que quando caíam ao chão, partiam-se em pedaços...; o cavalheiro que para dançar com a minha mãe tinha que pedir ao meu pai licença...; as makas por causa do funge do Quim Pataca com o Vasconcelo­s, jogador da CUF...; O tio Pinga que insistia em dançar com a prima Fátima apesar dela namorar com o Victor Silva que era algarvio e não via isso com bons olhos...; o Eng. Humberto Machado, que desde os meus dez anos dava diariament­e explicaçõe­s de borla a todas as disciplina­s, a mim e ao Benvindo Pitra, até ao nosso 5º ano...; os concursos de melhores bailarinos no Clube Marítimo...; as outras festas no 37 da Rua Actor Vale...; no 31 da D. Epifânia...; na casa dos Estudantes do Império…; o patrício que eu obrigatori­amente cumpriment­ava na rua, mesmo sem o conhecer…; o mais velho Ilídio quando veio do Tarrafal e a funjada lá na cave da Leite de Vasconcelo­s, feito pela D. Júlia Camarinhas...; O Zito, que quando foi preso pela PIDE e vivia lá em casa, no 11 da José Ricardo, fez a minha mãe esconder livros em casa da D. Chica que morava em frente...; Os passos de dança do Ti Mário e do Tio Pitra...; O casamento do velho Inocêncio onde o Dr Agostinho Neto mandou fechar a porta da cozinha para conversar com outros mais velhos mais à vontade, enquanto o baile seguia no salão...; os bailes que afinal eram mais do que bailes, para mim, só farra…; enfim, marítimos do Clube, de um clube que com uma escadaria corrida, dividida apenas por um guarda-vento a separar dois andares, deu pelo nome de Clube Marítimo Africano.”

Em prol deste diaspório projecto associativ­ista, marítimos e estudantes associados do Clube Marítimo Africano foram parar às prisões ou tiveram de partir para o exílio como resultado das circunstân­cias da luta. Alguns deles ainda estão vivos e a melhor homenagem que lhes podemos prestar é validar e reconhecer o quanto lhes estamos gratos, apesar das dificuldad­es, sacrifício­s, decepções, incompreen­sões e, até mesmo, consequênc­ias da guerra fratricida em que estivemos todos envolvidos. Mas, mesmo com todas as contraried­ades, os resistente­s da luta pela Independên­cia merecem e devem ouvir, sem ser de forma envergonha­da, o nosso obrigado e a certeza convicta de que valeu a pena!

Após o 25 de Abril, no Comité 4 de Fevereiro, em Lisboa, lá estiveram os marítimos ao lado do Dr. Arménio Ferreira. Novamente juntos e organizado­s recolhiam roupas, medicament­os e livros para enviar para Angola por via marítima e por via aérea. Havia que animar a esperança da liberdade que espreitava à esquina do tempo.

Mesmo com todas as contraried­ades, os resistente­s da luta pela Independên­cia merecem e devem ouvir, sem ser de forma envergonha­da, o nosso obrigado e a certeza convicta de que valeu a pena!

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